Voz do atrevimento
A palavra
“atrevimento” (como tantas outras expressões, em qualquer idioma) tem dupla
conotação: uma positiva e outra negativa. Geralmente consideramos atrevida a
pessoa desconhecida que nos dirige a palavra de forma abrupta, agressiva, senão
brutal. Ou a, que sem mais e nem menos, ocupa o lugar que era nosso numa fila
qualquer. Ou a que dá uma cantada numa mulher bonita que, visivelmente, “não é
para o seu bico” e que não lhe deu, dá ou dará a mínima confiança.
Há, é claro,
muitas e muitas outras acepções negativas do termo que nem é preciso mencionar,
pois todos as conhecem, de sobejo.. Mas o atrevido, também, é o indivíduo que
realiza o que ninguém conseguiu ainda realizar e que tinha toda a aparência de
irrealizável.
É o que
desafia as circunstâncias e faz coisas admiráveis. É o que encara a vida com
coragem e ousa ir contra a corrente, impondo, com argumentos, idéias e convicções, mas com consciência e
certeza do que faz, e se dá bem. Para o escritor Henry Miller, “imaginação é a
voz do atrevimento”. Esse é o atrevimento que me fascina e me mobiliza. Ou
seja, o de imaginar alguma coisa que à primeira vista pareça irrealizável,
ousar e tentar concretizar o que foi imaginado, e mesmo que não tiver sucesso,
gozar da deliciosa sensação de ao menos haver tentado.
A realidade, nua e crua, é fria, é
feia, é insuportável. A vida – sempre convém reiterar, já que muitos parecem se
esquecer disso – não tem reprises. E é muito bom que não tenha mesmo. Seu maior
encanto é justamente este, o da novidade, mesmo que às vezes o “novo” nos traga
surpresas desagradáveis, não raro trágicas até. O consolo, porém, é que no
momento seguinte pode consertar tudo e nos proporcionar alguma alegria que
sequer desconfiávamos que fosse possível. Por isso, atrever-se é preciso.
Sempre!
A propósito de hipotéticos (e
impossíveis) recomeços, a escritora Júlia Lopes de Almeida faz a seguinte
constatação, no “Livro das donas e donzelas” (pouco conhecido, mas que deveria
ser lido, sobretudo pelas mulheres): “O que torna a vida encantadora é o
imprevisto, e a prova é que ninguém desejaria recomeçá-la da mesma forma porque
já a viveu, nem creio mesmo que, se tal milagre se pudesse cumprir, houvesse
alguém, por mais venturosa que lhe houvesse corrido a curta vida, que tivesse
coragem de a recomeçar”.
Honestamente, eu não a teria. Muitos
até afirmam, ousadamente (ou seria impulsiva temerariamente?), que gostariam
dessa reprise. Mas são palavras soltas ao vento, sem nenhuma reflexão ou
fundamentação, ao sabor do momento. Quando refletem, essas pessoas concluem que
o que viveram não foi sequer tão bom assim e muito menos o ideal.
Optam por desejar – reitero, se fosse
possível recomeçar a vida – não só por um início diferente, mas também por um
meio e fim diferentes, bastante diversos daqueles pelos quais já passaram.
Júlia prossegue, em suas considerações: “Corra alguém os olhos, pense, siga o
curso da sua existência, e ficará convencido de que só alguns dias lhe
mereceram o desejo de serem revividos. Dias? Nada mais que momentos, de
inolvidável doçura”.
Valeria a pena, pois, passar,
novamente, pelos mesmíssimos dramas, dores, incertezas e aflições pelos quais
já passamos, apenas para reviver escassos, pouquíssimos, raros e fugazes
momentos de felicidade? Creio que nem mesmo o mais masoquista dos masoquistas
gostaria de reviver tudo isso.
Ademais, é possível que no segundo
seguinte esteja o tosão de ouro, o Santo Graal, o cálice sagrado da felicidade,
que tanto procuramos e que raros encontram algum dia. É verdade que pode estar,
também, a morte. Mas isso não há como evitar. Será sempre, sempre um dos tantos
riscos que teremos que correr.
Ouçamos, pois, a voz do atrevimento,
que algumas vezes não passa de quase inaudível sussurro, mas que em outras é um
grito, um brado, um berro a nos desafiar. Não nos acovardemos nos refugiando na
comodidade da omissão. Sejamos ousados, posto com a necessária prudência, e
criemos as oportunidades que precisamos, caso elas não surjam espontaneamente,
como cavalos selados, à espera, apenas, de serem montados.
Sejamos atrevidos, sim, face às
circunstâncias, favoráveis ou negativas, não importa. No primeiro caso, para
elevarmos ao máximo grau as satisfações que venhamos a conquistar. No segundo,
para pelo menos tentar reverter o que pareça (e talvez de fato seja)
irreversível. Ousemos sonhar, cada vez mais, cada vez mais alto, cada vez mais
intensamente. Ousemos encarar o que outros já encararam, e fracassaram.
Ousemos, acima de tudo, dar asas velozes e fortes à imaginação, essa voz alentadora
do atrevimento (do saudável e construtivo, convém sempre destacar).
Boa leitura!
O Editor.
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O atrevimento aqui se mostra como uma saudável ousadia, desde que dentro de alguns padrões de segurança.
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