Discurso de posse
* Por
Paulo Carneiro
À gratidão pela honra
que me fazeis, acolhendo-me em vossa Companhia, junta-se, nesta hora, o
sentimento dos deveres que contraio para convosco. É que as Academias não são
apenas consagrados cenáculos literários, prêmio e estímulo para grandes obras.
Nelas se forja o pensamento vivo das nações; são laboratórios de experiências
in anima nobili, abrigos, ao mesmo tempo que fontes renovadoras, da língua, da
tradição e dos costumes. À medida que a civilização se apura e se avoluma o seu
patrimônio cultural, tornam-se elas a consciência e a memória da humanidade.
Contrapõem-se, assim, ao mau signo que, segundo Barbusse, pesa sobre os homens
do nosso tempo, transformados, por uma crescente necessidade de fuga, em
“máquinas de esquecer”.
Aqui, ao revés, se
liga sempre o passado ao porvir, num encadeamento ininterrupto de gerações, de
ideias, de escolas filosóficas e literárias. Aqui revivem os homens que
ilustraram o seu tempo, serviram os pósteros e se foram, por atos e palavras,
da “lei da morte libertando”.
São as Academias, pela
autoridade que lhes imprimem os homens de elite que as compõem, os mais altos
tribunais da opinião pública. Cabe-lhes, na carência de outros poderes,
submersos no caos contemporâneo, o papel de guias espirituais e de promotores
das necessárias renovações.
Reunidos para velar
pela cultura de nossa terra, temos missão sagrada a cumprir, e esse encargo nos
alça acima de nós mesmos, desprendendo-nos, quanto possível, de paixões e
interesses pessoais.
Tomo, perante vós, o
compromisso de não faltar às obrigações que ora assumo. Confio em que a tanto
me ajudareis com a vossa generosidade e o vosso saber pois tendes, sem dúvida,
presentes em vosso espírito as nobres advertências de Tomás de Kempis,
transpostas por Corneille em versos inimitáveis que seria sacrilégio tentar
traduzir:
Aucun n’est sans
défaut, aucun n’est sans faiblesse,
Aucun n’est sans
besoin d’appui,
Aucun n’est sage assez
de sa propre sagesse,
Aucun n’est assez fort
pous se passer d’autrui.
***
[...]
Minhas senhoras e meus
senhores, outro que não eu deveria ocupar a Cadeira de que hoje tomo posse! Um
largo consenso assegurava-lhe já brilhante eleição, quando em trágico acidente
caiu brutalmente morto. A Anísio Teixeira cabia, melhor do que a ninguém, a
honra de suceder a Clementino Fraga. O grande educador que ele foi - o maior de
quantos o Brasil já teve - traria a esta Casa uma das inteligências mais ágeis
e mais vivas do nosso tempo, uma cultura aberta a todos os horizontes e o
exemplo de uma vida que se inscreverá um dia entre as glórias mais altas e mais
puras do nosso país. Seu nome há de ficar para sempre incorporado ao patrimônio
da Cadeira 36 e espero que os meus sucessores aqui recordem de geração em
geração a grandeza da obra que ele realizou, os livros que escreveu e as lições
que nos legou de energia, desprendimento e devoção à causa pública!
***
Senhores Acadêmicos, a
vida e os trabalhos do patrono e dos primeiros ocupantes desta Cadeira fazem-me
pensar, com igual admiração, nos inúmeros promotores de idênticos feitos, em
outros campos de nossa atividade. Surge, assim, ante os meus olhos, uma legião
de homens e mulheres vindos de todas as profissões e dotados do mesmo espírito
criador. Insuflaram, eles, alma e grandeza à nossa pátria, ilustrando-a e
protegendo-a, no afã de elevar por todos os meios o seu grau de civilização.
Cumpre que as novas
gerações se sintam em íntima comunhão com esses autênticos construtores da
nossa nacionalidade, se inspirem nos seus atos de abnegação e coragem, renovem
as suas invenções e descobertas.
Tão desatenta e
perdida se encontra, nos tempos que correm, a consciência dessa herança, e tão
vagos se afiguram os deveres por ela gerados, que eu me pergunto se não seria
azado o momento para erigir-se, sob o vosso patrocínio, o Panteon da nossa
cultura, museu e templo em que se inscreva a epopeia da nossa formação e se
perpetue a lembrança dos que a serviram e por ela se imortalizaram.
Oxalá mereça essa
ideia o vosso apoio e vos apraza recomendá-la aos responsáveis pelos nossos
destinos!
***
Ao evocar perante vós
a figura de Clementino Fraga animou-me o propósito de associar para sempre a
sua memória às tradições de nossa Academia. Possuiu ele as qualidades de
coração, de espírito e de caráter que mais honram o nosso povo. Na sua vida e
na sua obra é a imagem do Brasil que transparece, lúcida, generosa e
promissora. É o Brasil voltado para as glórias do seu passado e as perspectivas
do seu porvir, consciente das suas responsabilidades e dos seus deveres para
com a saúde e a educação dos seus filhos, um Brasil confiante nos rumos que a
ciência e a tecnologia abrem à sua prosperidade, mas antes de tudo atento aos
valores intelectuais e morais que lhe cabe preservar, sem deixar-se corromper
nem transviar por miragens ou temores, um Brasil bastião da ordem, da cultura e
da liberdade!
(“Discurso na Academia
Brasileira de Letras”, 1971)
*
Químico, embaixador e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.
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