Baiana
* Por
Gustavo do Carmo
Seu brilho no carnaval
passado foi memorável. Passista não conta pontos para os jurados, mas Jojô da
Comunidade parece ter sido fundamental para a conquista do título inédito da
Unidos da Comunidade Tijucana.
No ano seguinte,
porém, a sua boa forma foi ofuscada por algumas gorduras e celulites
localizadas no culote e na barriga. Joveleine Clementina, seu nome de batismo,
em homenagem a duas grandes sambistas do passado (Jovelina Pérola Negra e
Clementina de Jesus), foi chamada pelo presidente da escola para ser comunicada
de que não seria mais a rainha da bateria da Unidos da Comunidade Tijucana.
Passara oito meses
difíceis. Sua vida sofreu uma grande virada. Foi abandonada pelo marido suíço,
que a trocou por outra mulata brasileira, quinze anos mais nova e sete polegadas
de cintura mais magra.
Joveleine já tinha
trinta e cinco anos. O filho que teve com quinze engravidou uma menina com a
mesma idade que ela estava quando o pariu. O pai dele era um amigo de infância
assassinado por traficantes. O rapaz agora foi abandonado pela namorada e pediu
que a mãe o ajudasse a criar a filha.
Morava em Genebra e
teve que voltar a viver no Rio com o filho, a neta, a mãe, a avó cardíaca, a
bisavó nonagenária e os três irmãos mais novos. Dos mais velhos, um foi morto
pela polícia porque tinha virado assaltante, o outro por bandidos porque tinha
virado policial e o mais velho de todos morava em São Paulo, estava rico e não
queria nem saber da família, mesmo com a irmã rica. Ah, claro. Joveleine teria que sustentar
todos.
Com tantos problemas,
dinheiro ainda não faltava. Ganhou uma boa pensão do ex-marido. Usou parte dela
para comprar um apartamento de um condomínio de classe média em Del Castilho,
no subúrbio da cidade. Aplicou o restante no banco. Mas poderia faltar um dia. Foi
previdente ao não escolher a zona sul ou a Barra da Tijuca porque as despesas
seriam muito altas.
Arrumou um emprego de
vendedora em uma butique no shopping perto do condomínio. Aliás, o condomínio
ficava praticamente dentro do shopping. Apesar de otimista, acreditava que os
convites para apresentações como mulata de carnaval diminuiriam com a sua nova
forma física e isso, de fato, aconteceu. A sua carreira de modelo e atriz
também não deu certo. Só era convidada para papéis pequenos e de prostitutas.
Todos recusados. Também sofria com o racismo nas campanhas publicitárias.
Jojô foi chamada pelo
presidente da sua escola para ser comunicada de que não seria mais a rainha,
nem madrinha, nem princesa da bateria. Estava gorda para a função. Embora o
presidente não tivesse dito isso na sua cara. Só sugeriu que ela emagrecesse.
Por ele ser seu amigo,
se sentiu traída. Seria substituída por uma modelo paulista, loura e de seios
fartos. A madrinha seria a nova esposa dele, uma morena clara que tinha inveja
e ciúmes dela. Ela ainda a provocava, chamando-a claramente de gorda.
Turquinho, filho de
bicheiro, mas sem ligação com a atividade contraventora do pai já falecido
(assassinado) repreendeu a mulher e, sem querer perder o seu respeito, sugeriu
que ela fizesse uma preparação física que ele pagaria o personal trainner ou a academia. Se conseguisse recuperar a forma
física, ela ganharia um espaço de madrinha de alegoria.
Usando o seu otimismo,
Jojô aceitou, inclusive o treinador pessoal. Acreditava reconquistar o posto no
carnaval seguinte. Só que os problemas reapareceram.
Na primeira sessão,
ela sentiu uma forte dor abdominal. Não aguentou fazer o exercício. Desistiu da
preparação, dispensou o treinador e procurou um médico. Descobriu que estava
com câncer no estômago em estágio avançado. Ficou em choque.
Não contou nada para a
família. Apenas deu sermão nos irmãos e no filho. Pediu que eles economizassem
dinheiro. Exigiu que o filho fizesse um concurso público, que lhe daria
estabilidade para cuidar da filha. Pediu que o mais velho dos irmãos mais
novos, que cursava faculdade de medicina e já estagiava, cuidasse da família e
não deixasse as irmãs mais novas, de dezessete e onze anos, não engravidassem
cedo. Reuniu estas duas para reforçar o conselho e também pedir que elas
procurassem outras atividades profissionais além do carnaval, pois um dia
poderiam ter o tapete puxado, como aconteceu com ela. A moça sonhava seguir os
passos da irmã como madrinha de bateria e a menina já era porta-bandeira
mirim.
Viajou para São Paulo
e fez as pazes com o irmão mais velho, o primeiro que ficou sabendo da sua
doença, com a condição de que não contasse para ninguém.
Começaria a
quimioterapia depois do carnaval. Foi à escola de samba e, humildemente, pediu
uma vaga de baiana para o Turquinho. Ele estranhou, mas aceitou. Não comentou
nada com ele que estava doente.
No dia do desfile,
arrumou-se com muito zelo e pensamentos. Acabou confessando a doença para a
mãe, a avó, o filho e o irmão mais novo quando eles perceberam o seu abatimento.
Foi aquela choradeira familiar antes de ir para o sambódromo. Todos queriam que
ela desistisse, mas ela, maquiagem já borrada, garantiu:
— Morro na Avenida,
mas morro feliz e realizada porque cumpri a sua trajetória no carnaval.
Na concentração, deu o
último abraço no irmão mais velho, que estava no Rio com a família. Ele tentou
impedi-la, mas ela repetiu o que disse para a mãe, a avó e o outro irmão. Tentou
contar a verdade para Turquinho, mas o barulho era tanto que deixou para o dia
seguinte. Ele ficou sem saber.
No caminho para a sua
ala, foi abordada pela nova rainha de bateria, a modelo paulista, que vestia um
maiô decotado cheio de purpurina e penas de faisão.
Ela lhe pediu
desculpas por ter tomado o seu lugar, a abraçou e as duas trocaram desejos de
boa sorte. Antes de se juntar às baianas foi provocada pela rival, a mulher do
presidente da escola, que estava nua com o corpo pintado. Deu-lhe um soco que a
deixou no chão. Foi a última vez que esmurrou alguém.
Já no meio do desfile,
Jojô da Comunidade ou Joveleine Clementina caiu como um peão que encerrava o
seu movimento. Todos ficaram tristes, mas a nova baiana cumpriu a sua trajetória
na maior felicidade. Sua despedida foi memorável. A escola foi rebaixada para o
segundo grupo.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance
“Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea
“Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess -
http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu blog, “Tudo cultural” -
www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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