Zorrilho I – Como terá sido
* Por
Urda Alice Klueger
Fico olhando para ti,
meu bichinho, que um dia, num passado que não sei, já foste muito amado, tanto
que qualquer pequeno carinho te deixa emocionado de ternura, os olhos líquidos
de lágrimas, um milímetro da linguinha de fora dentre os dentes fechados, assim
como quem não crê que aquilo tenha voltado (o carinho), ou lembrando talvez de
um lugar e de um tempo do passado quando foste tão feliz com aquela pessoa que
te deu amor, te ensinou a entender que estavas seguro, te ensinou a andar de
carro no banco de trás, bem comportadinho...
Penso em quem foi essa
pessoa: uma criança? Um homem? Uma mulher? Que nome terias então?
Impossível saber as
coisas da tua pequena vida, que a veterinária disse que está entre dois ou três
anos – que foi que te aconteceu? Eu, cá comigo, penso que em algum momento
foste roubado com quem te quis porque eras pequenino, parecido com uma
raposinha, pretinho com detalhes champanhe – quem te roubou? Um homem, uma
mulher, uma criança? Impossível saber, mas decerto foi a partir daí que começou
o teu duro calvário, sabe-se lá como, se ficaste passando de mão em mão, se
fugiste à procura de quem te amava e foste de ancorar no lado podre da vida sem
saber, sem querer – sei o que te passou aí nesse teu tempo turbulento: fome,
maus tratos, falta de amor... Em algum momento conheceste o ódio de uma mulher
má, daquelas parentes de bruxa malvada (talvez fosse a própria bruxa, como
saber, aqui nessa proximidade de Naufragados, lugar de sabás de bruxas?),
dessas pessoas de coração empedernido, dessas que dá asco até em Satanás, que
foi aquela que os meus vizinhos viram quando veio a esta Enseada de carro e te
atirou longe, na maré alta, para que te afogaste, sem nem o direito a uma
última refeição, como o sórdido sistema prisional dos Estados Unidos ainda
concede aos que estão para serem executados.
Sei de ti desde então,
do alvoroço dos vizinhos por terem falado com aquela mulher má que ainda ficou
jogando chispas de raiva antes de se ir como uma possessa, do teu quase último
alento para sair das águas, todo molhadinho e trêmulo, e de como te segurei
junto ao coração. Sei da fome que tinhas, que comias qualquer comida, mesmo
cheia de formigas, e do teu cansaço, e da tua sede, e de como dormiste como um
mortinho quando te botei dentro de uma casinha improvisada com uma caixa de
papelão.
São cinco semanas,
agora, que estamos juntos, e quanta coisa aprendi a teu respeito, como essa de
teres o conhecimento do amor, um dia, quando não sei adivinhar, mas que posso
imaginar, e fico a me perguntar quem te ensinou o amor, um dia, que não
esqueceste dele mesmo depois de todas as maldades pelas quais passaste, e te
tornaste capaz de amar de novo, e a cada pequeno gesto de carinho que te faço,
quase te derretes de amor por mim, e vejo nos teus olhinhos marejados que há a
lembrança de alguém, lá no passado, que te amou também, que foi tão bom para
contigo que agora continuas apto a amar de novo...
Hoje és meu
cachorrinho e te chamo de Zorrilho, por tua semelhança com uma raposinha, e
sabes e entendes quando te chamo assim que agora esse é o teu nome, e percebo,
na tua ânsia de correr atrás de cachorrões quinze vezes mais pesados do que os
teus parcos dois quilos (penso que tinhas uns 500 gramas quando chegaste, cinco
semanas atrás), que serias capaz de morrer por mim.
Tu és bonzinho,
educado, cordato, cachorrinho que sabe andar de carro e que num instante
aprendeu que gosta muito de comer carne, molhos saborosos, nata, requeijão,
coisas refinadas para um cão, e andas a rejeitar estas bobagens como arroz ou
ração e, sobretudo, o quanto amas o pouco de amor que posso te dar (Atahualpa
tem grande ciúme de ti) – não terias aprendido tanta coisa em cinco semanas se
lá no teu curto túnel do tempo não tivesse havido aquela pessoa que um dia te
deu amor em grande quantidade. Corta-me o coração ver teus olhinhos marejados
de lágrimas quando recebes carinho e me fitas através daquele espelho líquido,
transformado em emoção pura, a pensar que um dia, lá no passado...
Ah! Zorrilho, já se
tornou bastante complicado vir a viver a vida, um dia, sem ti!
Enseada de Brito, 14
de Janeiro de 2017
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado
em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
Fico impressionada com o tanto de amor que Urda tem.
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