Pelas barbas de Fidel
* Por
José Ribamar Bessa Freire
"Fidel,
Fidel, qué tiene Fidel, que los americanos no pueden con él".
De uma canção de Carlos Puebla
Nem o enterro das
cinzas de Fidel Castro, neste domingo (4), dará trégua à guerrilha travada nas
redes sociais. O facebook converteu-se numa Sierra Maestra. "Gusanos"
e "castristas" disparam insultos, ofensas, xingamentos. Se palavra
fosse bala, o campo de batalha da internet estaria coalhado de cadáveres. O
tiroteio verbal envolvendo Cuba tem, porém, mais de cinquenta anos, como mostra
o ocorrido no Rio com dois colegas vizinhos de quarto na Casa do Estudante do
Brasil (CEB), um prédio de 12 andares na Esplanada do Castelo, detrás do Bob´s,
onde morávamos.
Foi assim. Num plácido
domingo de 1966, o alagoano Valério - o Chulé e o paraibano Cid - o Pirata
decidiram espairecer. Saíram pau-de-araramente pela av. Presidente Wilson rumo
à Cinelândia, sem um puto no bolso. Duas quadras depois, no Consulado
Americano, um cartaz anunciava sessão especial de um filme com entrada grátis.
Sem opção de lazer, entraram. Era propaganda contra Fidel, o "ditador
sanguinário". Na sala, entre os ilustres convidados, o agropecuarista Heli
Ribeiro, candidato a vice-governador do Rio pela ARENA, o partido da ditadura.
Lá pelas tantas, a
tela exibe um mercenário preso no ataque de Playa Girón, na Baía dos Porcos,
encostado num paredón prestes a ser fuzilado.(Corte). Um pelotão de atiradores
aguarda as ordens de um comissário barbudo que era a cara do Jack Palance em
"Os Brutos também amam". (Corte). Imagens de Fidel e Che que fumavam
charuto e riam, gozando da desgraça alheia (Corte). Na hora agá, a mãe do
detento interrompe e pede clemência, provocando suspiros nos espectadores:
"ais, uis, nãão, que horror!". O barbudo, olhando para a câmara,
pergunta a alguém fora do campo visual:
- Fuzilo agora ou não
fuzilo?
Foi aí que Chulé e
Pirata não se contiveram. Sem combinar, gritaram juntos a plenos pulmões:
- Fuzila! Fuziiiiiiiiila!
Barbas de molho
Protesto geral na
sala. Acenderam as luzes. Heli Ribeiro ordena a prisão dos dois estudantes que
fogem em desabalada carreira perseguidos por seguranças parrudos. Naquela
noite, eles me contaram a história aqui narrada conscientes de que estavam no
lugar errado. Se fosse no Cine Paissandu, seriam aplaudidos. Eis o que eu
queria dizer. Quando brasileiros discutem apaixonadamente Cuba, estão pensando
no Brasil e em muito mais: no destino que cada um aspira para a espécie humana.
Além disso, os comentários sobre Cuba revelam o que cada um é.
Valério e Cid eram
pacíficos. Queriam fuzilar a miséria, o analfabetismo, as doenças, a fome, a
mortalidade infantil, a injustiça social, a concentração de riquezas, o
latifúndio, a corrupção, o tráfico de drogas, a prostituição, enfim tudo aquilo
representado por Fulgêncio Batista aliado ao complexo industrial-militar dos
Estados Unidos. Já os brasileiros que se horrorizavam com o paredón em Cuba
eram os que silenciavam sobre os crimes da ditadura militar no Brasil: censura,
tortura, prisões arbitrárias, desaparecidos políticos, arrocho salarial,
sindicatos policiados. Era a luta coxinhas x petralhas avant la lettre.
Foto de uma placa no
aeroporto de Havana com frase de Fidel foi postada depois de sua morte por um
simpatizante: "Hoje 200 milhões de crianças dormirão nas ruas, nenhuma
delas é cubana". Mencionava a presença de 3 milhões de cubanos nos
funerais, muitos chorando. Alguém que não curtiu comentou: "Claro, são
obrigados pela ditadura a fingir que amam Fidel, caso contrário perdem os
empregos e as mamatas". Três milhões de fingidores? Três milhões de
mamatas? Pelas barbas de Fidel! Trata-se de agressão à nossa inteligência.
Várias postagens no
Facebook reduziram as relações sociais a uma operação aritmética, garantindo
que Pinochet matou só 3.000 opositores, enquanto Fidel fuzilou 25.000. Como
regra geral, tais comentários são feitos por quem não leu porra nenhuma sobre a
história de Cuba, mas se deixou contaminar pela mídia, que não consegue nomear
Fidel sem pespegar-lhe um "ditador".
Um desses focos de
infecção é o artigo "Fidel Castro, senhor de escravos" (Folha de SP
02/12), escrito pelo jornalista Leandro Narloch, que manipula números duvidosos
sem indicar as fontes e jura que Fidel, um psicopata, enganou milhares de
intelectuais no mundo inteiro. Intelectuais, como se sabe, se deixam enganar
facilmente. Não é o caso do tal Leandro. Nem é o caso do Demétrio Magnoli que
espinafrou Serra e Fernando Henrique porque eles reconheceram os avanços da
revolução cubana.
Foi, porém, o caso de
Cortázar, Neruda, Thiago de Mello e muitos escritores como Gabriel Garcia
Márquez, prêmio Nobel da Literatura, convidado por Fidel a criar uma escola de
cinema e televisão em Cuba para estudantes do terceiro mundo, que teve como professores
Robert Redford, Francis Coppola, Costa Gravas e outros "enganados"
que homenagearam Fidel, enquanto Pinochet não conseguiu "enganar" um
só intelectual e talvez por isso ninguém lhe dedicou um poema, uma canção, um
filme.
Fio da barba
Outro intelectual
"enganado" foi o cineasta norte-americano Saul Landau, diretor de
"Fidel", que tive a oportunidade de ver no Chile, em 1970. Com uma
câmera de 16mm, o gringo acompanhou o líder cubano em uma viagem de jipe pela
ilha, em 1966. Documentou a relação de Fidel com a população do campo e da
cidade, registrou os avanços da reforma agrária mais radical do continente, mas
também as reclamações dos descontentes. Quase todo mundo "fingia"
amar o "psicopata" e "senhor de escravos".
Durante a exibição
deste documentário nos Estados Unidos foram registrados muitos incidentes. Uma
bomba atirada numa sala de projeção em New York não feriu ninguém, mas outros
atentados e sabotagens ocorreram, incluindo o incêndio do Haymarket Theatre em
Los Angeles, em 1970, na véspera da estreia, o que acabou levando à suspensão
da programação em outras cidades. A polícia, eficaz para matar um negro de vez
em quando, não identificou nenhum dos autores. Os americanos não puderam ver o
filme, a não ser em sessões fechadas na Universidade de Berkeley.
Mas em Cuba, também,
embora toda a população estivesse alfabetizada, não era possível ler alguns
livros como "Literatura e Revolução" de Leon Trotsky. No verão de 1972, com uma bolsa de uma
instituição francesa, passei 42 dias na ilha. Numa noite em um bar de Santiago
de Cuba, depois de vários "mojitos" de rum branco, dois poetas locais
se queixaram que o único exemplar havia sido retirado da biblioteca. Depois fui
interrogado por agentes da Seguridad del Estado que queriam saber o teor de
nossas conversas. Como a delação não era premiada, me calei.
Sem abdicar do senso
crítico, é possível defender as conquistas da revolução cubana. Segundo a ONU,
que ao contrário dos intelectuais "não se deixa enganar", Cuba tem
0.3% de analfabetismo e um Índice de Desenvolvimento Humano de 0,769, acima do
Brasil. Dados da UNICEF indicam que "Cuba é o único pais da América sem
desnutrição infantil". Cuba incomoda porque - como escreveu Márcio Souza -
é uma prova atrevida de que é possível organizar a sociedade de outra forma.
Que no dia do enterro
de suas cinzas, Fidel receba as merecidas homenagens daqueles que não abdicam
da utopia, "la carne, sangre y piel del hombre redimido", como canta
Mercedes Sosa. Hasta la victoria final. Hasta siempre, Comandante!
*
Jornalista, professor e historiador.
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