Pagu era Patrícia Galvão
* Por
Mara Narciso
“Ainda
hoje o meu agradecimento ao homem que nunca me ofendeu com piedade”.
Na FLIP, Festa
Literária Internacional de Paraty de 2016, a escritora homenageada foi Ana
Cristina César, que, nascida em 1953, interrompeu a própria vida aos 31 anos.
Foi elogiada como grande em todas as mesas de discussão. Li uma biografia e um
livro dela, e vi que de fato foi precoce e avançada. Mas o que dizer do
pioneirismo de quem nasceu 43 anos antes? “Elas Por Elas - Histórias de
Mulheres contadas por grandes escritoras brasileiras” é uma miscelânea de
épocas e estilos, e entre eles há uma carta de Pagu.
Rosa Amanda Struasz,
organizadora da antologia apresenta Pagu: “Patricia nasceu em 1910. Teve
iniciação sexual precoce. Aos 15 anos escandalizava a sociedade fumando na rua,
falando palavrões, usando blusas transparentes e cabelos curtos eriçados. Mas
foram os textos contundentes publicados à mesma época, no Brás Jornal, que
chamaram a atenção da intelectualidade paulista. Militante do Partido Comunista
foi a primeira mulher a ser presa no país por motivos políticos.”
Patrícia Rehder Galvão
foi jornalista, tradutora, ilustradora, atriz, escritora e poeta engajada no
Movimento Modernista, ativista comunista presa 23 vezes pela Polícia Política
de Getúlio Vargas, também foi casada com Oswald de Andrade (1930-35) com quem
teve Rudá de Andrade e com Geraldo Ferraz (1941-62) com quem teve Geraldo
Galvão Ferraz. Escreveu “Parque Industrial”, “Paixão Pagu: a autobiografia
precoce de Patrícia Galvão”, entre outros. Na “Carta a Maú” (Trecho), da
antologia “Elas por elas” Pagu debulha sentimentos numa conversa pedregosa com
seu marido Geraldo. As nove páginas da narrativa forte dão ideia de quem foi
aquela mulher. Pagu, por ela mesma, é contundência milimétrica, numa
sinceridade rascante que atira o leitor no seio da alma dela. A habilidade
dessa desbravadora em se desnudar impressiona, pois cata sensações escondidas,
se submetendo a uma sessão de psicanálise à portas abertas. Sua expressividade
é cristalina, sem subterfúgios, expondo experiência sensorial lúcida, cruenta e
exata, algo que não se confessa nem a si mesma. Quantos hoje podem dispensar a
autocensura?
“Minha insubordinação
nas aulas me garantia uma roda de simpatia”. Pagu conta que pegou uma carona
até o aeroclube com um homem que não era livre, ocasião em que tinha 11 anos.
Provocou e aceitou a posse sexual, mesmo sabendo que desafiava a ética
estabelecida. Menciona como os pais de outras meninas não queriam que se
relacionasse com elas. Imaginava-se boa, mas era vista como perversa. Os encontros sexuais clandestinos
continuaram, numa entrega total, mas também houve tempo de aversão. Quando ela
se descobre grávida aos 14 anos, o parceiro parte para os Estados Unidos. Segue-se um aborto com dilacerações físicas e
mentais. “Eu sempre fui sim, uma mulher-criança. Mas mulher”. Espancada em
casa, precisava se casar. O pai negociou, ela aceitou, mas o pretendente
morreu. Queria sair de casa, fez um contrato, pagou e conseguiu se libertar.
Separado de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, desde antes já estava com
Pagu e continuaram. “Eu não amava Oswald. Só afinidades destrutivas nos
ligavam”. Vem uma gravidez que se perde já no fim. Depois mais outra. O
relacionamento de ambos é liberal, ele tem outras mulheres e compartilha com
ela, e tudo que houver deverá ser aceito com naturalidade, mas as palavras de
Patrícia mostram que não é bem assim. “Havia a imensa gratidão pela brutalidade
da franqueza”.
A Wikipédia diz que
Pagu publicou em jornais desde os 15 anos, sendo extravagante, num
comportamento incompatível com sua família proletária, conservadora e
tradicional. “O apelido Pagu surgiu de um erro do poeta modernista Raul Bopp,
ao dedicar a ela, em 1928, o poema "Coco de Pagu": Pagu tem uns olhos
moles/ uns olhos de fazer doer./ Bate-coco quando passa./Coração pega a bater./
Eh Pagu eh!/ Dói porque é bom de fazer doer (...)// Bopp inventara o apelido, imaginando que seu
nome fosse Patrícia Goulart e pretendendo fazer uma brincadeira com as
primeiras sílabas do nome”.
Audaciosa, pioneira em
quase tudo, morreu aos 52 anos em decorrência de um câncer. Sobre ela fizeram
poemas, música, filme, peça de teatro, trabalhos acadêmicos e minissérie. Em
“Eternamente Pagu”, filme de 1988, uma poderosa biografia com Carla Camurati no
papel central, é referida pelo pai, que a ensinou a fumar, como despudorada e
deletéria. Caso a roteirista e a coragem de se desnudar fossem da própria Pagu,
o filme seria ainda mais intenso. Dela li apenas as nove páginas de uma carta,
que me deixaram impactada. Não sei escolher-lhe um adjetivo, mas digo que
Patrícia Galvão abriu caminho para que eu chegasse até aqui.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Pagu é minha conterrânea, nasceu em São João da Boa Vista. Terra de duas outras mulheres-expoentes nas artes: Orides Fonetela e Guiomar Novaes. Abraços e feliz 2017, Mara!
ResponderExcluirAgradeço a você e a Pagu. Bom ver gente como vocês, Marcelo.
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