Figuras
* Por
Assionara Souza
Não tive qualquer
intimidade com a cantora de solos magníficos. Isso até hoje me deixa furioso. E
profundamente desconsolado. Tenho medo de perder a voz. Tenho medo de não saber
mais fazer coisas que faço bem desde pequeno. Concentro-me em resolver essa
história para evitar problemas futuros. Não quero perder as palavras. Não quero
jamais me esquecer de como se deve enrolar o pião antes de lançá-lo. Para que
ele caia zuuuum. Imitando os ventos que roubou quando ainda tinha a forma de um
bruxo poderoso seqüestrador de tempestades. Ela não me perdoou jamais. Eu jamais
me perdoarei pelo que aconteceu.
Em tardes de inverno
intenso como essa fico pensando que tudo teria sido mais fácil se eu não
tivesse feito o que fiz. Mas não pude evitar. Saiu como uma rajada. Disse que
não saber o tempo certo de produzir uma metáfora era o mesmo que não saber
usá-la. E disse isso com raiva. Estava sentindo muita raiva quando pronunciei
essa sentença. O que eu disse não foi uma metáfora. Foi um insulto. Talvez devesse ter adotado mais brandura em
minhas palavras. Deveria tê-la feito compreender que havíamos perdido tempo.
Mas sei que disse. Disse que ela não tinha a menor sensibilidade para lidar com
metáforas. Até esse dia em toda sua vida ela não havia sido tão humilhada. E o
mais estranho é que ela se chamava Felice. Assim como Letícia ou Leda. E esses
tantos nomes que nos lembram coisas como: felicidade, alegria, dança e
música.
Não se deve usar de
violência para alguém de natureza musical. Os cantores entendem de metáfora sem
que pensem a respeito delas. É algo que nasce como qualquer outra reação
física. As metáforas saem espontâneas. Não sabem sequer se o que fizeram foi
dizer uma metáfora. Mas o corpo todo se satisfaz enquanto eles estão
metaforizando especialmente para um outro corpo.
Lembro da preparação
que foi quando Felice começou a se aproximar poeticamente de mim. Mas só hoje
isso faz sentido. A minha presença a incomodava. Como se a fizesse cócegas e
ela quisesse rir muito. E tivesse que esconder o riso como a deusa grega escondia
o rosto quando tocava flauta. Suas palavras desencontravam completamente do
ritmo das minhas. Aquilo era estranho. E ela fugia de perto. Eu me sentia um
gato cuidando das muitas crias que eram minhas dúvidas: "Por que ela me
odeia tanto? O que fiz de errado dessa vez?". Nem percebi que era a
tentativa sincera de produzir metáforas que agitava o seu espírito. E a fazia
fugir o olhar de mim. Uma vez ela me pareceu completamente mudada. Olhou firme
em meus olhos e me disse: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e
vento". Eu sorri como quem nada quer e não querendo ou não achando que
poderia querer mesmo alguma coisa. Pois bem. Não esbocei qualquer reação. O meu
olhar era o mesmo de quem está no cruzamento e espera o sinal abrir. Acho que
queria ir pra casa. Afinal tínhamos exercitado uma dificílima récita camoniana
prontos a sairmos dali contando qualquer piada sem graça em Dolce Stil Nuovo.
Eu estava cansado de poesia.
Ao chegar sozinho em
casa, ainda olhando para os vincos da minha sólida porta de madeira, ver se
descobria uma imagem nova, o clarão da metáfora explodiu na segunda virada da
chave. Hypocrite lecteur! O diabo me sussurrou com sua voz irônica: "Hoje
poderia até ser um dia de chuva e vento". Talvez sem que eu soubesse — e
eu não imaginei mesmo — aquela metáfora tenha me acompanhado todo o caminho.
Como o zunido do pião depois que é lançado. Bem quieta. Vagando. Uma metáfora
completa. Com o tom da voz exato. Meu corpo quase caiu ali mesmo.
Quando dois começam a
trocar metáforas, corre-se o risco de morrer afogados nas próprias palavras. É
preciso ter muita paciência. O que eu podia fazer? Se era eu oficialmente
aquele que conhecia bem as metáforas e o seu modo de usar. E ela foi tão sincera.
Parecia que estava fazendo a Primeira Comunhão: "Hoje poderia até ser um
dia de chuva e vento". Eu não tinha hóstia alguma para aquela boca aberta
como um morango partido ao meio. Se ela desconfiasse de que tudo o que eu dizia
era fruto do que colhia nos livros mais estranhos. Nem teria visto em mim um
domador de metáforas. Agora é que tudo fazia sentido. O timbre e o peso de sua
voz. Silêncios expressivos. Imagens que eu teimara em não enxergar.
Olhares.
Caminhei pelas ruas
mais sujas da cidade e a metáfora se conservava fresca e cheia de nervuras como
um morango sorridente recém cortado. Eu já estava ficando, não sabia porquê,
com uma espécie de ódio. Mas um ódio que me deixava entontecido.
"Hoje", assim como em Ricardo III: "Agora". E caindo para
um imprevisível não se sabe o quê. Todos os dias que seguiram à noite em que
ela me lançou aquela metáfora, repeti cuidadosamente: "Hoje".
"Hoje". "Hoje". O restante do mistério "poderia até
ser" dobrava-se no desenho da curva de nível de um abismo. O
"poderia" não traz efetivamente nada de especial. Mais uma forma
desgastada que pode denotar preguiça. Isso se não viesse obviamente carregada
com o "até". De tão parecido que estava: "poderia até ser".
De tanto que era certo: "poderia até ser". Fazia tanto sentido que:
"poderia até ser". Um dia de chuva e vento.
Eu soube tudo de uma
vez. Porque certamente não quis pensar. Na minha distração, não pensei que
fosse possível. Não pensei. Como supor que uma luminosidade estava sendo
produzida? Há quanto tempo estaria? Nem sempre o que vem em nossa direção é
publicidade. Nem sempre estão só querendo nos encher de testes do tipo "Eu
sei, mas duvido que você saiba". No primeiro dia em que vi Felice tive um
pressentimento. Ela não me pareceu alguém que usava testes do tipo "Eu
sei, mas duvido que você saiba". Vi algum mistério que eu não saberia
atingir. Vi alguma violência da qual deveria me prevenir. Uma tempestade. É
muito comum que poetas sintam medo. Colhemos as metáforas direto nos livros. E
nos assustamos quando ela é formada dentro de um coração aberto como um morango
partido ao meio. Os olhos dela me compreendendo. E o coração ansioso por
escrever em palavras a sensação. No interior do corpo. As batidas empurrando o
sangue para as faces: "Hoje poderia até ser um dia de chuva e vento".
E eu deixei a metáfora caída no chão. Depois de um dia inteiro envolvido na
cansativa tarefa de semear palavras no caos. Os outros que estavam ali,
achando-se grandes poetas, pisaram a metáfora que a cantora de solos magníficos
acabara de construir com todo o corpo. Lastimável.
Na semana seguinte a
esse acontecimento ela estava indiferente. Parecia até triste. Não tinha mais
nada que me pudesse permitir arriscar uma aproximação. Então senti mais raiva
ainda. E me dirigi contra ela. Como se estivesse instruindo todos ali. Não
saber usar uma metáfora no tempo certo, eu quase gritei, é o mesmo que não
saber usar uma metáfora. Bem no meio da cara da cantora de solos magníficos.
Olhando furiosamente em seus olhos.
Ela correu dali
cobrindo as faces e chorando. Aquela imagem para mim foi uma grande ironia.
Nunca mais nos vimos de novo. Nunca pude conhecê-la em profundidade. A metáfora
não interpretada pode gerar silêncios irreversíveis. Hoje é um dia de chuva e
vento. Lembro de Felice e fico com medo de perder a voz. Não saber mais dizer
uma palavra que seja.
*
Assionara Souza nasceu em Caicó (RN), em 1969. Mora em Curitiba. Leciona
Literatura Brasileira e Produção Textual. É mestranda em Estudos Literários
pela UFPR e estuda trânsitos entre literatura e artes plásticas na obra de
Osman Lins. Em 2005, publicou o livro de contos Cecília Não é um Cachimbo, pela
editora 7Letras.
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