Ação e reações ao Diário Secreto de
Humberto de Campos
O “Diário Secreto” de Humberto de Campos – publicado em 1950 em fascículos e, quatro
anos depois, em livro, em dois volumes, pela empresa que publicava a revista
semanal “O Cruzeiro” (a mais prestigiosa e de maior circulação nacional à
época) – causou intensa polêmica e,
pior, enorme escândalo, dado seu explosivo conteúdo. O motivo de toda essa
celeuma, que perdurou por praticamente uma década, eram os diversos registros e
impressões pessoais nada lisonjeiros e e nem um pouco abonadores, feitos pelo
escritor maranhense, a respeito de pessoas de grande projeção nacional nas
letras, na política e na sociedade de então. Citam-se entre as pessoas
diretamente atingidas figuras como Machado de Assis, como o presidente Getúlio
Vargas e como o poeta Olavo Bilac, entre tantos outros.
Várias das personalidades retratadas, ou melhor,
caricaturadas, ainda estavam vivas na ocasião. Muitas, portanto,
mobilizaram-se, de várias formas – ou por via judicial ou mediante candentes
respostas na imprensa – na tentativa (vã) de desacreditar Humberto de Campos e
de proibir, até, a venda do “Diário Secreto”, que lutavam para que fosse
recolhido e destruído o material publicado. A mesma atitude foi adotada por
parentes, amigos e simpatizantes das pessoas mortas citadas e que não podiam,
claro, se defender. Houve, até, caso de ameaças de morte a um dos herdeiros do
escritor. A publicação do “Diário Secreto” dividiu a família do autor. As
filhas eram, desde o início, contrárias a que o explosivo material viesse a
público. Foram, porém, “voto vencido”. Prevaleceu a opinião do primogênito, de
Humberto de Campos Filho, que achava que a vontade do pai deveria ser atendida
integralmente, sem restrições. E foi justamente ele o alvo de vários
telefonemas anônimos, e de outros tipos até menos sutis de ameaças, jurando-o,
até mesmo de morte caso não recolhesse o livro já publicado. Ele não recolheu.
Felizmente, nada lhe aconteceu, a não ser uma série de aborrecimentos, mas sem
maiores conseqüências.
Humberto de Campos tinha consciência de quão delicado era o
conteúdo de seus diários. Não consta, todavia, que em algum momento tenha lhe
passado sequer remotamente pela cabeça a idéia de destruir esses registros.
Aliás, em algumas crônicas publicadas em jornais ele chegou a insinuar que
poderia publicar em vida todo esse material. Não publicou. Todavia, antes de
morrer, teve o cuidado de guardar os originais nos cofres da Academia
Brasileira de Letras, da qual era membro (e que chegou a presidir). Os
originais foram embrulhados em papel pardo, selados, lacrados e rubricados por
ele, para que não houvesse dúvida da autoria. Além disso, escreveu, à máquina,
na frente dos pacotes: “Diário de Humberto de Campos – para ser aberto e
publicado em 1950”, ou seja, com a recomendação expressa de se publicá-lo
apenas 15 anos após a sua morte.
Cito a esse propósito a reveladora tese de doutorado do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco de
Giscard Farias Agra, de 2014. Intitulada “Quando a doença torna a vida um
fardo: a trajetória de Humberto de Campos (1928-1934)”, esse detalhado e
meticuloso ensaio tem servido como uma espécie de “roteiro”, para que eu aborde
trechos específicos do “Diário Secreto”, sem que me perca nos meandros dessa
obra. Giscard observa, a certa altura, o que teria levado o escritor maranhense
a lacrar esse material, encerrá-lo no cofre da Academia Brasileira de Letras e
determinar, expressamente, que ele fosse publicado, apenas, em 1950 (ou a
partir desse ano):
“Consciente da acidez e da amargura com que narrava o seu
cotidiano e caracterizava os seus pares nesses textos, Humberto afirmara que o
prazo dado era necessário para superar certas tensões ainda existentes em sua
época, bem como para evitar que seus escritos ‘íntimos’ gerassem novas graves
questões com aqueles que neles figurassem”. Mais adiante, Giscard acentua:
“Humberto, portanto, talvez tenha querido dar aos seus relatos, ao estipular a
publicação apenas após anos ao seu falecimento, o patamar de testemunho
prestado com a franqueza só possível a um morto, liberto, portanto, das convenções.
E, de fato, quando os originais do Diário foram devolvidos à família e a
polêmica sobre a sua possível publicação começou a aparecer nos jornais, em
1950, o ‘Diário da Noite’ estampou a matéria com um título bem sugestivo, que
possibilitava pensar justamente em uma pessoa que, já morta, executava uma ação
própria dos vivos como voltar a falar e a escrever: ‘Pode um morto falar dos
vivos?’” Boa pergunta!!
Registre-se que “Diário Secreto” não se restringe a atacar,
a ironizar e, em muitos casos, a escrachar figuras de grande projeção do País
daquela época, como os desavisados, que nem mesmo leram o livro, podem,
erroneamente, deduzir. Parte considerável desse material é um relato, pungente,
detalhado e sincero feito por Humberto de Campos, da sua doença e dos efeitos
dela sobre seu físico e, principalmente, seu espírito. Claro que isso não gerou
nenhuma polêmica. Muitos sequer se detiveram nessas narrativas. Num registro
que fez em 9 de fevereiro de 1930, Humberto citou um comportamento bastante
comum, não apenas no seu tempo, mas em todos os tempos, talvez como uma
tentativa de justificação para o teor crítico de seu Diário. Escreveu: “Cada
geração literária tem um ideal sacrílego. O da de Flaubert e dos Goncourt era
destruir Voltaire. O da atual, aniquilar Anatole France”. E não é assim que o
mundo das letras é e sempre foi tocado?! Fica claro que nesse trecho Humberto
referia-se à disposição sempre renovada dos escritores, e não só no Brasil, de
tentar aniquilar os pares semeando críticas, intrigas, maledicências. Ele não
agiu, portanto, de forma nada diferente de boa parte de seus pares (do seu
tempo e de todos os outros, frise-se), posto que, no seu caso, o fez em
linguagem nua e crua, sem subterfúgios.
Como na lei da Física, “em que toda ação gera uma reação”,
as reações à publicação do “Diário Secreto” não tardaram, quer da parte dos
nominalmente citados, quer dos que repudiavam a atitude de Humberto de Campos,
mesmo não sendo vítimas delas. Giscard Farias Agra cita, em sua preciosa tese,
algumas delas: “A ‘Revista da Semana’ chegou a lançar, em duas de suas edições,
já no mês de abril de 1951, uma enquete entre os intelectuais, perguntando-lhes
o que haviam achado do Diário. Classificações como ‘literatura de terceira’,
egocêntrico’, ‘mau escritor’, ‘ingrato’ foram alguns dos que apareceram para
adjetivar tanto a obra, quanto o seu autor. Olegário Mariano, por exemplo,
afirmou que ‘o Diário é um legado de lama’. Viriato Corrêa, por sua vez,
maranhense, imortal da ABL, e antigo colega de jornalismo e de chapa eleitoral
no pleito de 1930, a favor de quem Humberto escrevia publicamente, mas contra o
qual deixaria péssimas impressões no Diário, afirmou que ‘estamos assistindo à
putrefação de uma alma. Abriu-se o túmulo e apareceu a podridão’”. Outras
tantas manifestações mais ocorreram, muito mais contundentes e ferinas do que
estas, mas não as reproduzirei, para não reacender uma polêmica ditada por um
estúpido festival de vaidades que não deveria nunca sequer ter começado.
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Seu texto está fortíssimo. Elogios, mesmo falsos, são bem-vindos. Críticas deveriam ficar apenas no pensamento, se tanto. Será? Hoje se lê coisas piores nas redes sociais. Todos têm opinião sobre tudo, e estão sempre certos. Assim, nada mudou, a não ser para maior contundência.
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