Vovó
chegou e partiu na cauda de um cometa
* Por
Mara Narciso
O final do ano com
festas e presépios me traz inteira Maria do Rosário de Souza Narciso. Vovó foi
uma mulher perspicaz que pregava o carinho como arma para a paz. Como seu pai,
ensinava através de ditados populares. Tinha pele e olhos claros, cabelos
lisos, magra e pequena, mas tinha a força de um leão. Quando completou o
centenário do seu nascimento, escrevi sobre ela, mas ainda são tantas coisas
para dizer, do meu amor de neta para com a avó.
Era proveniente de uma
família com recursos. Meu bisavô Jason Gero de Souza Lima era comerciante e
fazendeiro, morava numa boa casa no centro da cidade, e tinha a Fazenda Lagoa
da Barra. Vovó apaixonou-se por Petronilho Narciso, que trabalhava como
balconista, porém seu pai se opôs ao namoro. Morto o pai, largou o curso de
normalista, a dois meses de receber o diploma e se casou em 4 de outubro de
1931.
Dona Du, como era
conhecida, assim como eu, tinha asma, que herdamos do seu pai. Esse detalhe a
obrigava a ter certos cuidados, como por exemplo, não tomar nada gelado, e só.
Sempre teve quem a ajudasse, mas cuidava da casa e do jardim onde cultivava
rosas e depois hibiscos, zelava pela saúde dos outros, aplicava injeções, e
ensinava normas de higiene. Sua casa foi uma das primeiras a ter telefone e
geladeira. Uma vez ela descobriu que Vovô tinha outra família. Era 1942. Ela
pegou os cinco filhos que tinha até então e foi à casa de um dos seus irmãos
(eram 24) pedir ajuda, queria ficar por lá, mas o irmão a fez retornar.
Quando nasci, Vovó
tinha 45 anos, era disposta, fazia doce de goiaba no fogão de lenha, biscoitos
e rosca num forno no quintal, e marshmallow que ela falava “mexemel”. Viveu a
vida se submetendo a superalimentação para engordar. Comia de 3 em 3 horas,
usava Postafen com Rarical, o que fosse de sal levava farinha de mandioca e o
que fosse de doce, levava mel, para ficar mais forte (calórico). Tomava um copo
de cerveja preta ao natural antes do almoço, como remédio, e se na hora do
jantar não conseguisse comer, batia a comida no liquidificador e bebia um copo
grande com o nariz tapado. Conseguiu aumentar 12 quilos, indo de 37 para 49 Kg,
seu último peso.
As lembranças de Vovó
me fazem bem. A superlua que se avizinha faz-me pensar no romantismo daquela
mulher sonhadora, que não perdia um filme daquele gênero. Morava perto da
Catedral e o Cine Fátima era logo ali. Mais nova, ouvia Vicente Celestino, e
quando a casa ficou vazia, com nove dos onze filhos casados (dois morreram
ainda crianças) gastava as tardes ouvindo Roberto Carlos e Gigliola Cinquetti,
costurando para se distrair, enquanto conversava comigo. Dava conselhos, falava
de fatos acontecidos com ela, das atitudes corajosas que já tinha tomado, e me
contava segredos.
Paciente, nunca a vi
elevar o tom de voz. Ensinava a fazer comidinha, o chamado guisado, mostrando
como montar a trempe sobre tijolos num cantinho do quintal. As primas e eu
cozinhávamos arroz, farofa de ovo e fazíamos salada de tomate, mas não sabíamos
acender o fogo. Era muita fumaça.
Sua pequena chácara
chamada Rocinha ficava a poucos km da casa. Íamos a pé, acompanhando-a. Comprou
o terreno e plantou cada uma das árvores frutíferas, exceto duas grandes
mangueiras na entrada. Chovia muito naquele tempo, assim, a terra era úmida.
Enquanto Vovó olhava suas plantas, a gente procurava casas de aranha. A
portinha da casa delas é redonda. Identificada, tirávamos a tampa, e víamos o
túnel. Então, pescávamos a aranha com um pauzinho com uma isca de terra molhada
de cuspe na ponta. Após a retirada cuidadosa dos aracnídeos, colocávamos dois
deles frente a frente, e a luta começava.
Vovó tinha uma
paciência de avó. Não brigava, mas, atenta, estava sempre vigilante. Guardava
frutas do seu quintal para mim, especialmente umbus e pinhas docíssimas. Minha
saudade completa 30 anos, pois nasceu no dia 4 de junho de 1910 e morreu no dia
19 de novembro de 1986. Seus 76 anos de vida foram o ciclo exato do Cometa de
Halley. Além de chegar e partir junto com o cometa, Vovó teve a benção de
morrer como um passarinho. Levantou-se uma hora mais cedo do que a habitual,
trocou de roupa, penteou os cabelos, sentou-se na poltrona do quarto, e pendeu
a cabeça. Apenas os muito bons partem assim.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Bela biografia. Dona Maria do Rosário deu motivos para deixar saudades.
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