A Rua da Glória sumiu!
* Por
Urda Alice Klueger
- Na noite de hoje
tive que ir resolver uma coisa na Rua da Glória, a rua da Escola da minha
infância, e depois me sobrou um tempinho para uma caminhada. Resolvi que podia
caminhar por lá mesmo, e estacionei no pátio de simpática pizzaria, que tinha
um dono também simpático, que me autorizou a deixar o carro ali. Vale lembrar
que a pizzaria ficava quase que defronte à minha escola primária, e embora o
dono da pizzaria tivesse me sugerido a caminhada em direção ao centro, onde
encontraria largas calçadas, disse-lhe que tomaria o rumo oposto, que iria à
procura do passado, da minha infância, pois estudara ali e conhecera tantas
crianças da Rua da Glória, naquele tempo! E então fui! Céus, a Rua da Glória
sumiu! Eu lembrava de estreita serpente de poeira, ladeada de casas humildes, e
sabia muitas coisas sobre ela, como o pé de goiaba que havia atrás da casa da
nossa prima Coca, como as orquídeas boas de roubar na cerca da casa tal ou tal,
onde moravam meus amiguinhos – a Rua da Glória era uma rua de grande intimidade,
para mim! Nela ficava a minha escola, a Igreja Nossa Senhora da Glória, a casa
paroquial, o salão paroquial, onde funcionava um grêmio que ajudei a fundar, e
que tinha o lindo nome de “Grêmio Guias das Montanhas”, e nela viviam as
lembranças da escolinha da D. Júlia Strawolska, anterior à Escola São José, que
fora a minha – cadê tudo?
- Minha escola mudou
completamente – tem diversos andares, hoje, e já não se chama São José, embora
eu tenha tido a impressão que a imagem de São José continua lá no alto do que
foi, um dia, o segundo andar, acima de uma varanda onde éramos vistos pelo
Governador do Estado, quando aparecia, e pelas Madres da Congregação, quando se
abalavam de Minas Gerais até o Sul. E por todos os lados há cercas e muros,
muitas cercas e muitos muros, e muito asfalto e muito concreto, e o muro da
minha escola, hoje, é tão grande que já não pude descobrir se ainda vive uma
árvore cuja muda nossa sala plantou lá dentro, lá no começo dos anos 60, no Dia
da Árvore, junto com a Irmã Maria Rosária!
- A Igreja quase
parece a mesma, não tivesse agora lá no alto da torre relógios que parece que
não funcionam. Mas está toda cercada de grades, e das antigas construções só
restou a Casa Paroquial, e olhei bem atentamente que ainda está lá a sala onde um
dia, quando eu tinha 15 anos, o Padre Sílvio Tron tirou da minha cabeça o sonho
de vir a ser uma arqueóloga. Enveredei Rua da Glória adiante, então, e foi como
entrar num mundo desconhecido. Não consegui reconhecer uma casinha que fosse,
uma pessoa que fosse! A serpente sinuosa tem muito menos curvas, depois do
asfalto, e como há asfalto, concreto e ferro por todos os lados! A minha Rua da
Glória já não existe. Nem existem mais os morros cobertos de mato que estavam
por detrás das casas: assim de noite, na ignorância da mudança, as muitíssimas
janelas iluminadas morros acima me davam à impressão que olhava para os cerros
de Caracas, na Venezuela, embora tivesse certeza que, de dia, o que tinham sido
um dia os morros repletos de fadas e duendes, e até uma gruta de Nossa Senhora,
seriam diferentes dos cerros lá do quase Caribe! E a lua quase cheia, que
deveria estar reinando soberana por cima das matas que tinham sumido, agora
parecia ser apenas mais uma janela iluminada naquela sensação de se estar em
Caracas! Pergunto-me: se até a lua sumiu da Rua da Glória, como pode ela ter
sobrevivido? Sei que andei e andei, fui longe e depois voltei, e nenhuma casa,
nenhuma pessoa que fosse consegui reconhecer – sequer o lugar onde um dia fora
à casa da nossa prima Coca, a mãe do Ernani, da Minervina e de tantos mais; a
avó do biólogo Elias e de muitíssimos mais! Se sequer o lugar da casa da Coca
consegui reconhecer, o que dizer do resto? Sabia, família a família, quem
morava em cada casa, e agora tudo se foi. Vi apenas uma casa comercial que
tinha “Stoll” por nome – fiquei a pensar que talvez se tratasse da família de
uma menina chamada Maria Stoll, graciosa sílfide que era liderança no nosso
colégio – mas será que a gente da Maria Sotll ainda está por ali? A Rua da Glória
da minha infância vive hoje, apenas, dentro do meu coração. Quando voltei da
caminhada e disse ao homem da pizzaria que a Rua da Glória sumira, ele ficou
feliz:
- Progrediu um bocado,
não foi? Perguntei se ele era dali. - Não, cheguei à Garcia na década de
setenta.
Mesmo em 70, a Rua da
Glória era outra. As mudanças devem ter acontecido tão imperceptivelmente que
quem estava ali não notou.
Para mim, no entanto,
foi como um soco no peito.
Blumenau, 31 de
janeiro de 2006.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros, entre os
quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
Ainda bem que a gente tem coração para guardar a Rua das Glória, e também memória, pois sem ela não há saudade.
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