População flutuante II
* Por
Mara Narciso
O meu avô Petronilho
Narciso dizia que Montes Claros, desde os seus primórdios em 1857, tinha
vocação para capital, porque centralizava todo o norte de Minas, Mucuri,
Jequitinhonha e parte da Bahia. Isso era surpreendente, pois, além da pecuária
poucos atrativos havia. Terra infértil, diziam, nenhum curso d’água volumoso
(tinha o Rio Verde Grande), longe do mar e a 420 km de Belo Horizonte, a cidade
teve avanços pioneiros em relação a outras cidades. Em 1871 foi fundada a Santa
Casa de Montes Claros, em 1926 chegou o trem de ferro e em 1944 a Rádio
Sociedade Norte de Minas - ZYD7 fazia suas transmissões. Os jovens das cidades
vizinhas, incluindo meu avô, vinham morar aqui.
Na década de 1970,
acelerou-se a industrialização, devido à isenção de impostos proporcionada pela
SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. Quando esta fase
terminou houve fechamento de várias fábricas, desemprego e galpões abandonados,
só reaproveitados anos depois. A vocação econômica foi mudando conforme as
décadas, hoje predominando a indústria, o comércio, a pecuária e a prestação de
serviços, com destaque para as faculdades, atendimentos médicos e exames
complementares. Aconteceu uma setorização, com área médica predominante nas
imediações da Santa Casa, na Praça Honorato Alves, um lugar com árvores novas e
boa sombra. Em todos os dias úteis, grande quantidade de pessoas é vista na
praça.
A população flutuante
e de poucos recursos vem das cidades vizinhas, zona urbana e rural para ser
submetida a consultas médicas, exames e tratamentos diversos marcados para a
parte da manhã e começo da tarde, e têm ali um local de referência para o
descanso e espera da volta. Assim, durante todo o dia há pessoas sentadas ou
até mesmo dormindo sobre toalhas, esperando horas, sob calor escaldante. O dia
quase perdido proporciona estar com o médico por uns poucos minutos. Há
lavadores de carro que dão segurança ao local, pois não se vê falar em roubos
ou furtos. Corre água nas mangueiras, música alta, jogo de carta e dominó, e
circulam muitas pessoas aflitas com suas doenças e com as demoras nos
consultórios médicos, clínicas, laboratórios ou hospitais e a espera da
condução até seu retorno para casa.
Alguns desses
viajantes mal dormem, saindo da moradia por volta de duas ou três horas da
manhã, chegando de táxi fretado ou de micro-ônibus da prefeitura. Descem ainda
de madrugada e ficam por ali, em grupo ou sozinhos, aguardando os serviços
abrirem. Depois que são atendidos, voltam ao local para esperar a condução.
Isso quando os médicos não atrasam e os motoristas não os atormentam, ligando
de instante em instante e algumas vezes até vão embora, deixando-os ao
deus-dará. Poucos anos atrás não era assim, mas hoje a maioria está vestida
como gente da cidade grande, e invariavelmente portam um celular. Por outro
lado, alguns não trazem dinheiro e ficam sem comer, apenas bebendo água. Ali
não tem banheiro público, e algumas mulheres estão grávidas ou carregam seus
filhos doentes. Mal conversam, e os grupos pouco interagem. De um lado da praça
tem um pátio circular, uma espécie de arena com uma mureta e nela ficam pessoas
sentadas ombro a ombro, sem encosto, já que os bancos são insuficientes para
todas. Olhando de longe, a praça está lotada, afinal é uma pequena multidão.
As lixeiras costumam
ser desconsideradas por pequena parcela dessa população. A presença dela fez
surgir um comércio peculiar e até certo ponto movimentado. Há carrinhos onde se
oferecem CD, pipoca, sorvete, fruta, biscoito, salgadinho, água. Algumas
pessoas leem ou escrevem nos celulares, mas a maioria se senta no meio fio dos
canteiros e olha em volta, meio assustada, entediada, cansada e com fome.
Exaustas pela espera e pela doença, mostram desespero e desalento em suas
faces. Muitas não conhecem o lugar, se atrapalham, andam perdidas. Deve haver
voluntários que apóiam essa gente merecedora de todo o respeito, mas é preciso
fazer mais por ela.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Bom conhecer esse outro aspecto de Montes Claros, Mara. Espero que a situação hídrica da cidade, tão crítica há alguns meses, tenha melhorado um pouco. Abraços.
ResponderExcluirA chuva parou e o calor voltou, mas estamos otimistas. Deve chover este ano mais do que no ano passado. Obrigada, Marcelo!
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