O jornal
* Por
Alcindo Guanabara
O prelo completou a
cruz. A moral nova, a cuja influência a humanidade renasce, não se propaga, não
se infiltra, não se dissemina, não vence mares e montanhas, senão por efeito da
imprensa. É graças a ela que o pensamento se liberta, que o espírito humano se
emancipa de preconceitos, que a tradição se escoima e se seleciona, que a
prepotência dogmática se atenua e que o livre exame surge, como alicerce e
fundamento de uma nova moral social. O cristianismo transformou a humanidade em
vista de uma vida futura; a imprensa permitiu que ela usasse dessa
transformação, a benefício da vida terrena. A luz que a Alemanha assim acendeu,
iluminou todos os desvãos do passado e ilumina todos os arcanos do futuro;
suprimiu o tempo e a distância; aproximou as terras e as gentes; e ardendo sem
se consumir, estimula a ciência, incita a arte, protege e resguarda as
religiões e é o paladium da liberdade! Não foi sem razão que o nosso romântico
Castro Alves declamou, um dia, que, quando ela surgiu,
“... os pólos se abraçaram!
O Norte ouviu, chorando, o
soluçar do Sul!”
É à sua sombra fecunda
que os agrupamentos humanos crescem e se desenvolvem, adquirindo a consciência,
a dignidade e a liberdade, que os elevam à categoria de nações. Vereis, na
história, a força formidável desse instrumento de luta. Ele cria, defende,
impõe, preserva a liberdade de consciência. Livro, dissemina ideias, divulga
noções, dispersa conhecimentos, dilata os horizontes do espírito, gera a fome
de liberdade. Panfleto, destila fel e veneno, fulmina a tirania com o sarcasmo,
traspassa, como um florete, o corpo dos déspotas. É, porém, o jornal e a
expressão completa do seu triunfo. O panfleto, clandestino e anônimo, é ainda
uma arma de rebelião; o jornal só vive numa atmosfera de liberdade. Mesmo nos
países ainda flagelados pelo fogo interior, em cujas crostas se não fez a
consolidação dos regímens de liberdade, as erupções da tirania se acentuam pela
perseguição, pela suspensão, pela eliminação dos jornais livres. Também se
velam as faces dos deuses, para se praticarem os suplícios cruentos! Podem,
porém, desencadear-se as borrascas políticas; a livre imprensa cede, como os
salgueiros, à violência do tufão, mas não se aniquila: entra, nos dias límpidos
que se seguem, a lutar por fazer cada vez mais raros os cataclismos. A
liberdade é árvore de trato tão difícil, que muitos são chamados a sofrer por
seu cultivo, antes que se faça frondosa. Onde, porém, foi possível o
aparecimento de um livre jornal, em que alguém escreva por sua própria
inspiração pessoal, aí podem os povos solenizar uma vitória de sua força e
averbar uma esperança de seu predomínio.
Nem é preciso que esse
jornal se faça uma catapulta, ou se afie como uma adaga. A liberdade não se
assinala nem se afirma pelo combate ou pela paixão: existe, porque existe. Na
serenidade das páginas do jornal que mais alheio se mostre e seja às contendas
e disputas de cunho político, a liberdade resplandece, no registro diário dos
fatos e das coisas, na divulgação do pensamento humano, na disseminação das
idéias de filosofia e dos fatos da ciência, que as gerações que passaram nos
têm legado e constituem todo o nosso patrimônio de civilização. Assim, o jornal
é um centro de onde irradia a força geradora do progresso social; é um elemento
de conservação, rememorando diariamente a síntese da vida humana; é uma fonte
de esperança, despertando nos espíritos e nos corações o estímulo para o
trabalho e para a luta por um futuro melhor.
(Pangloss, O País, de
3-11-1904. Incluído em Discursos fora da Câmara, 1911).
*
Jornalista e político, membro da Academia Brasileira de Letras.
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