Dublê de
Chaplin
* Por
Marcelo Sguassábia
O cara nunca teve
graça nenhuma. No começo era até meio gordo, desajeitado, nem sabia segurar a
bengala direito. A criação do personagem foi dele, sim. Mas entre a concepção
do vagabundo e a tentativa de dar vida a ele, vai uma desastrosa diferença.
Charles bem que tentou, mas Carlitos na pele dele foi, essa sim, uma ridícula
piada.
Não é que eu
substituía eventualmente o Carlitos, em uma ou outra cena, como os dublês
geralmente fazem. O Carlitos era eu, cem por cento do tempo. Vinte e quatro
quadros por segundo. O acordo estabelecido com Chaplin me rendeu extraordinária
independência financeira, que perdura até este entendiante 1936. Mas chega uma
hora na vida em que dinheiro já não significa tudo. Melhor dizendo, chega uma
hora em que ele passa a significar nada, onde o relevante mesmo é tão imaterial
e provisório quanto uma comédia muda projetada numa tela rasgada de um
pulgueiro de Varsóvia.
Não me interessa
qualquer outro pacto lucrativo com ele hoje, nem com seus herdeiros daqui há
alguns anos. Quero a verdade e a glória que me cabe, e preciso disso em vida. O
contrato que fizemos, ainda em 1914, prevê pena pesada pela quebra de sigilo,
mas nunca estive tão disposto a pagar por ela. O vagabundo que incorporei é a
figura mais imitada do entertainment mundial, e eu fico tentando imaginar
Charles Spencer Chaplin, esse embusteiro glorificado injustamente com um Oscar
honorário, na fila dos indigentes para pegar sua sopa em algum gelado natal
novaiorquino. Sim, porque assim seria se não fosse eu.
Sendo eu o vagabundo
nas telas, o vagabundo na prática acabou sendo ele. Um vagabundo milionário,
parasita do talento alheio, um sujeito que não sabe como criar meios de tornar
ainda mais extravagante e perdulária a sua vida. Que tenta mas não consegue dar
vazão às montanhas e mais montanhas de dinheiro que chegam de Hollywood para
abastecer sua conta. E dá-lhe flashes, entrevistas, biografias autorizadas e
não-autorizadas, paparazzi, verbetes de enciclopédia que dão a coroa de gênio a
quem de genial não tem nada.
Isso é o que ele é: um
usurpador desengonçado, que mal equilibra um chapéu coco na cabeça enquanto
anda, e que na frustrada tentativa de encarnar Carlitos não lograva arrancar
risos nem da própria mãe.
Para ele, só existe
uma coisa mais ameaçadora do que o medo da verdade vir à tona: é o receio de
que algo me aconteça. Por isso me mantém em uma bela mansão no Kentucky, bem
longe das luzes da ribalta e dos tapetes vermelhos, que é como um casulo
asséptico a me resguardar do mundo real. E dessa redoma só estou autorizado a
sair para o set de filmagem, ao qual chego de madrugada e anonimamente, como
reles figurante.
Agora são 20h35 de uma
noite estrelada de agosto, e enquanto coloco no papel esse desabafo não posso
ainda afirmar se terei coragem de torná-lo público amanhã. Talvez as doze novas
cenas programadas, as centenas de autógrafos que darei entre uma tomada e outra
e a garantia do dinheiro fácil me façam pensar melhor, mudar de ideia e tocar
fogo nesse papel. Estão batendo na porta do camarim. Deve ser o gin-tônica que
pedi.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Um típico dublê de corpo, é certo. Mas por que não me contaram antes?
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