A
musicalidade explícita do poeta José Nêumanne
* Por
Aleilton Fonseca
As Fugas do Sol é um
expressivo título tanto para um livro de poemas, como para um disco de música.
No caso, é as duas coisas: poesia e música reunidas num CD, em que o poeta e
jornalista José Nêumanne Pinto declama 30 poemas de sua autoria, escolhidos do
livro Solos do Silêncio (1996). As músicas que acompanham os textos foram
compostas por Marcus Vinícius de Andrade especialmente para a edição.
A publicação de poesia
em CD é ainda pouco cultivada entre nós. Mas já é hora de se considerar esse
objeto lítero-musical, desenvolvendo uma crítica que avalie a qualidade dos
textos, a declamação, a música, enfim o projeto como um todo. As Fugas do Sol é
uma produção exemplar do gênero. O registro da voz do autor agrega um valor
especial, tornando o CD um marco e um testemunho importante de sua carreira.
Aliás, a performance de Nêumanne vai além desse registro. Sua voz tem qualidade
elocucional, é firme, atraente, bem impostada, não perde a naturalidade. Além
de recitar bem, ele se dirige indiretamente a quem o ouve, dando breves
explicações sobre a escolha, a concepção e as circunstâncias de criação dos
textos. Esse procedimento aproxima o ouvinte, que tem a sensação de estar
assistindo, frente a frente, o autor "falar" seus poemas.
De fato, o contato com
a voz do poeta é um atrativo a mais. A audição não substitui nem ameaça a
leitura do poema no livro, experiência particular em que o próprio leitor
projeta sua voz, sua entonação, seu ritmo. Entretanto, na leitura silenciosa ou
mesmo em voz alta, nem sempre a musicalidade do texto é bem (re)produzida pelo
leitor. A gravação, com tratamento artístico profissional, acrescenta uma outra
possibilidade de apreciação em que a voz, o ritmo e a entonação refletem mais
fielmente a vontade do autor. Enquanto isso, o fundo musical desperta ou
intensifica a sensibilidade do ouvinte, criando condições mais propícias à
recepção estética. No CD de José Nêumanne isso é bastante evidente. A música de
acompanhamento não é um mero enfeite, mas se coloca em diálogo, ocupando as
pausas normais da declamação e evoluindo ao lado dos versos sem se sobrepor. O
compositor Marcus Vinícius utiliza recursos da ambiência musical nordestina,
mistura elementos eruditos e populares, cria frases e acordes precisos que
enfatizam os temas, numa perfeita conjunção com a voz e a emoção do poeta.
Mas tudo isso seria um
esforço vão se os poemas fossem simples "letras", se não tivessem a
qualidade que garante seu estatuto poético, mesmo no silêncio das páginas de um
livro. Ora, José Nêumanne Pinto é, sem favor, um dos nossos melhores poetas contemporâneos.
Críticos exigentes como Ivan Junqueira, José Paulo Paes e Nelly Novaes Coelho
já destacaram as virtudes de seus temas e de sua linguagem. Nota-se a sua força
lírica ao tematizar a cultura sertaneja, haja vista "O encontro de
Cristino com Virgulino na viola de Seu Raimundo", "Desafio de viola
repentina e guitarra elétrica", "Na casa avoenga" e
"Seresta sertaneja". Outra fonte criativa são as experiências de
viagem, como se observa nos cinco poemas da série Barcelona, e as vivências
paraibanas, poetizadas nos sete textos da série Borborema. As composições
breves, como "Discurso" e "Tríptico marinho", são momentos
de condensação lírica, em que o poeta mostra a sua habilidade, o seu
"drible curto" e inventivo com as palavras. É preciso citar também "Lua
no lago", dedicado a Octavio Paz, cuja figuração plástica, sonora e
semântica encanta o leitor mais exigente. Os versos de Nêumanne têm uma
eloqüência envolvente, fluem com agilidade e não se dispersam. O autor sabe
extrair os significados viscerais das palavras e das frases, fazendo
associações e criando metáforas surpreendentes. Um exemplo disso é "A
seara de Saramago", dedicado ao escritor luso, um canto de crença e louvor
à língua portuguesa. Neste e em outros poemas, como "Decomposição da
folha", as referências intertextuais extrapolam a mera citação, se
reelaboram e se impõem com sutileza, de modo que os sentidos originais se
agregam a novas conotações poéticas, bem ao estilo neumanniano.
A poesia recitada por
Nêumanne tem uma estrutura melódica que mescla os recursos da oralidade e dos
cancioneiros populares com a dicção da lírica erudita. Talvez venha daí a força
do ritmo, da acentuação e da pontuação de seus versos, à feição do ágil
compasso binário. Quem solfejar os poemas vai perceber o valor musical das
pausas. Elas suavizam a cadência, criam uma expectativa agradável e cedem
espaço para a música instrumental emergir. O equilíbrio entre a fala e a
recitação garante a espontaneidade do discurso, que nunca se torna solene ou
cansativo.
O título do CD é
sugestivo. As "fugas", como canto lírico, seriam um modo de conjurar
a transitoriedade da existência. Por sua vez, "sol" representa o
tempo e a fonte da vida que é a matéria dos poetas. Na forma, os poemas tendem
a reiterar o ritmo, a cadência e a melodia. Por isso comportam a acepção
musical de "fugas" como variações sobre um mesmo tema, que não é
outro senão a própria vida imersa no mundo da cultura. Enfim, se ler As Fugas
desperta emoção estética, melhor ainda é ouvi-las, saboreando a música de Marcus
Vinícius e a poesia de Nêumanne.
in Jornal da Tarde, 10
de julho de 1999
*
Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da
Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da
Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.
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