A sogra do Medeiros
* Por
Rubem Costa
“Mesmo a contragosto,
sou obrigado a reconhecer que minha sogra às vezes tinha razão”, disse-me
Medeiros, recapitulando na memória a figura adiposa da mãe de sua mulher, dona
Margarida, senhora veneranda que Deus, embora tardiamente, convocara na véspera
para o gozo da vida eterna. “Visão do mundo”, acrescentou o liberto, “algumas
vezes ela conseguia ter, porém mesmo que não a tivesse, sempre arranjava um
jeito de acomodá-la em premissas falsas que retirava de um repertório de
provérbios acumulados desde a infância distante”. Pelo menos foi assim que ele
falou ao me contar sobre o dia em que a megera (expressão dele, não minha)
decidiu perseguir a família na viagem de ônibus que fazia ao Rio.
“Ano de 1960. Era a
primeira vez que iam à praia. Claro que não fora convidada, convidou-se,
argumenta, para nos acompanhar na data em que comemorávamos o primeiro
aniversário de casamento. Pois eu lhe digo, companheiro, para mal dos meus
pecados, a velha extasiou-se ao descortinar o mar com as ondas roçando a areia.
Logo em seguida, porém, escandalizou-se. Não, não pode ser, isso é falta de
pudor, uma pouca vergonha, vociferou de repente, apontando para duas garotas
que beijadas pelo sol, em maiô de duas peças, desfilavam displicentes em
direção ao mar”.
“Onde se viu saírem
assim peladas, quase nuas, mostrando barriga e pernas de fora para todo mundo
enfiar os olhos. Nunca vim ao Rio, mas sei que no meu tempo de moça os modos
eram outros”.
Nessa altura, Medeiros
esboça um sorriso maroto e continua: — “Pois não é que a jararaca, sacando da
bolsa uma revista de 1924, aponta o dedo para a página em preto e branco e
grita aos meus ouvidos: — Veja, meu genro, isso é que era decência. Pôs à minha
frente uma foto de banhistas em trajes típicos da época, ou melhor dizendo,
embiocadas numa blusa sem decote enfeitada de rendas que se engolfava num
ceroulão de brim esticado até os joelhos”.
“Veja bem, olhe com
atenção a discrição das mulheres que caminham elegantes para o mar. As de hoje,
essas que estão rolando por aí são um descalabro. Sem-vergonhice é assim.
Encurtam as pernas do calção e deixam a barriga de fora. Bem que meu saudoso
pai, Deus o tenha em bom lugar, sempre dizia — comer ou coçar só depende de
começar”.
“Do arsenal heroico de
provérbios que guardava, esse foi o principal anexim que ela detonou em nome da
moral naquele dia. E olhe”, Medeiros zomba, “que o biquíni sacadão inventado
por David Azupray nem era ainda sonhado, quando ela quase apoplexa completou
furiosa a inventiva: — Pelo que vejo, tempo chegará em que essas lambisgoias
aqui virão de traseiro de fora e peitos à mostra balouçando ao vento, Virgem
Santíssima, Senhora protetora dos partos, o que vão tirar depois?”
“Despida profecia, já
que o fio dental chegou em seguida para só cobrir...” Medeiros suspendeu a
frase para não falar um palavrão e com malícia brejeira sussurrou-me, segredando:
— “O pior aconteceu logo depois, quando me surpreendeu embevecido, distraindo
os olhos na garota que transitava com os trejeitos da garota de Ipanema que
Vinicius descreveu e eu cantarolava — que coisa mais linda, mais cheia de
graça, é ela menina que vem e que passa num doce balanço a caminho do mar”.
“A velha percebeu. Me
viu solfejando. Não me deu espaço. Agarrou-me com um puxão pelo braço e
gargarejou vigilante aos meus ouvidos: — Toma tento, moço, isso que está
passando não é para seu bico. É só para ver com os olhos e lamber com testa.
Apavorei-me com o
provérbio, podia ser promessa de denúncia à minha mulher. Deixa disso, Dona
Margarida, sou marido fiel, só tenho olhos para Nezinha, comigo não tem essa de
comer e coçar. Eu sei, meu caro genro, eu sei, você é fidelíssimo, mas é
daqueles que coçam antes pra comer depois”.
Dessa conversa
divertida com Medeiros me lembrei ontem quando, entre meus guardados deparei
com uma notícia, presumivelmente de 1964, publicada nos jornais, contando que
em Sumaré um juiz de direito muito religioso baixara edital proibindo o uso de
maiô de duas peças na piscina do clube da cidade. Pela feição folclórica, a
providência, já na época recebida com hilaridade, levou as más línguas a
dizerem que, logo no domingo seguinte, o recatado magistrado, vislumbrando uma
garota que nadava usando o modelo vetado, ficou furioso, passando a adverti-la
severamente: — Não sabe, moça, que aqui é proibido usar maiô de duas peças? A
jovem atarantada pede desculpas. “Me perdoe, senhor juiz, me perdoe, não fiz
por mal, estou pronta a obedecer, só me diga qual peça o senhor quer que eu
tire”.
Pois é, à margem da
fúria da sogra e da zanga do juiz que se inscrevem nas páginas do folclore,
impõe-se não esquecer de que são as exteriorizações das alterações
sócioeconômicas que, provocando um conflito de gerações, desafiam o homem na
civilização em mudança. O confronto que não é de hoje, vem de muito longe.
No senado romano,
acusando a degradação dos costumes e os vícios de seu tempo, Cícero (virtual
ancestral da sogra de Medeiros) já vituperava: “Ó tempora, ó mores”. E essa
colisão será sempre tanto mais atuante quanto mais intensas forem as aplicações
práticas das descobertas tecno-científicas de uma época.
Pensar é um estado de
espírito. Pensamos com os instrumentos de reflexão que o momento histórico
oferece ao raciocínio com larga repercussão de ordem ético moral no conceito de
vida. As gerações novas surgem sob a égide de uma instrumentalidade mui mais
ágil que a anterior, plasmando um comportamento existencial que se diversifica
na razão direta da distância que as separa. Assim, na era em que vivemos,
parece também anedótico lembrar que em 1825, quando se inaugurou na Inglaterra
a primeira linha de estrada de ferro do mundo, quase ninguém acreditava que um
veículo pudesse “voar” a dezessete quilômetros por hora.
Quando o trem
regressou, os jovens, dizendo que aquilo era o “futuro”, passaram a zombar dos
velhos que não quiseram embarcar com medo de que a “maria-fumaça” fosse uma
invenção do diabo. Com certeza, se estivesse lá, a sogra do Medeiros
exorcizaria o primeiro trem que o deslizou no mundo.
*
Professor e escritor, membro da Academia Campinense de Letras.
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