Segredos ao
vento
“A alma não tem segredo que a conduta não revele”, diz
conhecido adágio popular. Nossos atos, por mais que tentemos dissimular,
revelam, ostensiva ou veladamente, nossas idéias, pensamentos e sentimentos,
mesmo os mais secretos, aqueles que precisamos, queremos e nos empenhamos em
esconder do mundo. Há fraquezas nossas que não podemos revelar, por nos
deixarem vulneráveis. Há sentimentos que convém guardarmos apenas para nós, por
serem lesivos à moral e aos bons costumes. E há fatos que testemunhamos e sobre
os quais precisamos manter a boca fechada, por envolverem sérios riscos à nossa
integridade física ou à de terceiros, caso os venhamos divulgar.
Mas é possível manter algum segredo para sempre? Não digo
que haja absoluta impossibilidade, mas que é difícil, disso não tenho a menor
dúvida. Países despendem, por exemplo, fortunas imensas para manter serviços
secretos, cuja missão básica é impedir que informações estratégicas, que não
possam ser reveladas em nenhuma circunstância, permaneçam sigilosas. Em contrapartida,
contam com aparatos de espionagem para bisbilhotar o que seus inimigos
(ostensivos ou potenciais) e até supostos aliados tentam esconder. E estes,
claro, agem de idêntica forma. Mas volto à pergunta anterior: é possível manter
algum segredo para sempre?
Talvez a resposta seja positiva se este for do conhecimento
de uma única pessoa. E se esta se esquecer dele e não o revelar a absolutamente
ninguém, nem mesmo àquele em que deposite irrestrita confiança. E, ainda assim,
não há total segurança de que não venha, por qualquer circunstância que fuja ao
seu controle, a público.
A esse propósito, há uma conhecida fábula grega, que
atravessou milênios e continua mais atual do que nunca. Tem como personagem o
trapalhão rei de Bromionte, na Macedônia, norte da Grécia, Midas, aquele que
por obra e graça de Dionísio, deus da alegria e do prazer, tinha o poder de
transformar em ouro tudo o que tocasse e que, por causa do atendimento desse
insensato desejo, quase morreu de fome.
Em certa ocasião, Apolo foi desafiado pelo sátiro Marsias a
provar que era o maior músico daquele tempo. Conversa vai, conversa vem;
provocação de um lado, réplica de outro e os dois resolveram partir para um
tira-teima público. Fariam uma grande apresentação e ambos acreditavam que ao cabo
do desafio, ficaria estabelecido, de uma vez por todas, qual dos dois, de fato,
era o melhor.
Para compor o júri, foram convocados os maiores conhecedores
da arte musical de então. E entre os jurados, estava Midas, que havia sido
aluno do próprio Orfeu e que gozava de reputação de grande conhecedor do
ofício. Feitas as apresentações dos dois contendores, ficou claríssimo, até
para o mais néscio dos néscios, que Apolo se saíra muito melhor do que Marsias.
Todos os jurados concordaram com isso. Aliás, quase todos. Houve apenas um, e
único, voto discordante. E sabem de quem? Isso mesmo, de Midas!
Os adversários voltaram a se apresentar mais uma, duas,
cinco, dez vezes, pois cada um deles queria a unanimidade, para que jamais
restasse a mínima dúvida a respeito. E em todas as apresentações, persistiu o
voto discordante de Midas que, teimosamente, insistia em votar em Marsias.
Convencidos de que não conseguiriam demover o teimoso rei de Bromionte do seu
pouco inteligente voto, os jurados, enfim, declararam Apolo o vencedor. Mas sem
a pretendida unanimidade.
O deus, todavia, resolveu punir o teimoso juiz. Fez com que
as orelhas de Midas ficassem bem grandes, como as de burro, para que sempre se
lembrasse da sua teimosia. Desesperado, o monarca buscou, a todo o custo,
esconder a anomalia. Não a revelou para ninguém, nem para a rainha ou para os
filhos. Deixou os cabelos crescerem de formas a encobrirem as orelhas. Mas um
dia, teve que os cortar. Afinal, um monarca não poderia manter a aparência de
um gorila selvagem para sempre. E o barbeiro, ao cortar os cabelos de Midas,
descobriu o seu segredo.
Foi ameaçado de todas as formas. O arrogante rei, entre
outras coisas, prometeu cortar-lhe a cabeça e executar toda a sua família caso
alguém viesse a descobrir que tinha orelhas de burro. O barbeiro conservou, por
algum tempo, absoluto sigilo. Mas isto o incomodava demais. Em duas ou três
ocasiões, quase deixou escapar o que sabia. Conteve-se. Quando já não suportava
mais guardar o segredo, porém, decidiu que o revelaria a quem não podia falar e
se esqueceria daquilo que melhor seria nunca ter sabido.
O barbeiro dirigiu-se a um lugar isolado, perto do rio,
cavou um buraco e desabafou: “o rei Midas tem orelhas de burro”. Depois, jogou
terra por cima e voltou para casa, aliviado. Nunca mais pensou no fato. O tempo
passou. No buraco, nasceu um caniço, ao lado de vários outros. O monarca
acreditou que seu segredo permaneceria incógnito para sempre. Mas nunca mostrou
as orelhas a ninguém, nem mesmo para a família. Era algo inconcebível na sua
cabeça que alguém viesse a tomar conhecimento do seu defeito físico.
Todavia, o caniço, que nasceu no buraco do segredo, ao ser
tocado pela brisa, começou a murmurar: “o rei Midas tem orelhas de burro”.
Todos os outros da redondeza fizeram eco e repetiram a frase. O que era a
princípio um quase inaudível murmúrio, depressa aumentou. Não tardou a virar um
alarido e daí, um incontrolável clamor. A cidade inteira ouviu. É provável que
até surdo tenha ouvido, tamanho foi o barulho. E em pouco tempo, o comentário
em todo o reino era um só: sobre as orelhas de burro do rei. Todos riam – a
princípio secretamente, mas depois, de forma escrachada – do desditoso Midas
que, claro, caiu no absoluto ridículo. Pelo que se conclui que o povo tem
absoluta razão quando afirma que “segredo muito encoberto é sempre sabido”. E
como é!!! O desditoso rei de Bromionte que o diga!
Boa leitura!
O Editor.
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Ele mandou matar o barbeiro?
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