Há 64 anos o Brasil perdia seu
seresteiro
Você conhece Francisco Alves, caro leitor? Bem, certamente
que sim, dependendo de a quem me refiro, não é mesmo? Afinal, trata-se de um
nome bastante comum. É possível que você tenha algum parente, amigo, ou colega
de trabalho (ou de escola, ou de faculdade, ou seja lá de onde for) que se
chame assim. Eu conheci vários. Convivi com muitos. Alguns foram até mais do
que colegas: foram amigos. Outros... Bem, nem tanto. Mas nenhum chegou a ser
meu inimigo. Não me refiro, todavia, a um Francisco Alves qualquer (com todo
respeito). Trago este nome, hoje à baila, por se tratar de um dos homens mais
populares de seu tempo, cuja morte trágica, ocorrida num 27 de setembro de 1952
(há 64 anos, portanto), no auge do sucesso, comoveu todo o País na época. Chocou
desde o cidadão mais humilde e anônimo até as maiores autoridades da República,
deputados, senadores, ministros, o presidente Getúlio Vargas etc., além, claro,
de artistas de todas as artes.
Era um cantor. Óbvio, não se tratava de um cantor qualquer.
Era especial, especialíssimo, o top dos tops de então. Era, praticamente,
unanimidade nacional o que, em qualquer atividade, é sumamente raro. Guardadas
as devidas proporções, seu sucesso e sua popularidade eram maiores do que os
que ostenta, hoje, o já mítico Roberto Carlos. Não por acaso ostentava o título
de “Rei da Voz”. Carinhosamente, era chamado, também, de “Chico Viola”, por ser
exímio violonista e ter um violão como “companheiro inseparável” e de “Seresteiro
do Brasil”. Eu tinha nove anos de idade na ocasião da sua morte e, apesar da
pouca idade, era seu fã, com o fervor e a fidelidade que apenas uma criança
consegue demonstrar quando gosta, de fato, de alguém. E eu gostava demais de
Francisco Alves.
Destaque-se que ele atingiu o patamar de fama e de sucesso
em uma época em que não havia, ainda, a televisão no Brasil. Esta só veio a se
tornar opção dois anos antes de sua morte. Contudo, a quantidade de receptores
disponíveis dessa novidade, na época, era ínfima, irrisória, qualquer coisa que
ascendia a meras centenas, se tanto. O Rei da Voz foi fruto, portanto, da
chamada “era de ouro do rádio”. Ironicamente, o mesmo veículo que o popularizou
e o consagrou foi, indiretamente, a causa da sua morte. Explico. Francisco
Alves veio a São Paulo para uma apresentação de gala na Rádio Nacional
paulista, que congregou incontável multidão em delírio em sua performance. O
bom senso recomendava que ele pousasse em algum hotel da Paulicéia e fosse para
o Rio de Janeiro no dia seguinte. Contudo, Chico Viola tinha outra apresentação
marcada para a manhã do dia seguinte, na então Capital Federal. E ele era desses
artistas que respeitavam às últimas conseqüências seu público. Não queria
atrasar sua apresentação na Rádio Nacional do Rio, à qual era ligado por quatro
ou cinco décadas. Além do que, tinha vindo a São Paulo no seu próprio carro, um
Buick placas 11-65-80 DF e não tinha, pois, porque esperar.
Caso Francisco Alves soubesse o que o esperava, certamente
adiaria sua volta ao Rio. Mas... como saber? E a fatalidade colheu-o em cheio
em plena Via Dutra, tão perigosa que na época era conhecida como “Rodovia da
Morte”. Na altura da localidade de Una, no município paulista de Pindamonhangaba,
seu carro chocou-se, violentamente, de frente, com um caminhão com chapa 11-58-84
RS, dirigido pelo caminhoneiro João Valter Sebastiani, ao tentar uma imprudente
ultrapassagem a outro veículo. Estava, portanto, na contramão. A colisão foi
impressionante. O caminhão foi totalmente avariado, embora não destruído.
Imaginem, então, o Buick de Francisco Alves! Transformou-se num monte
irreconhecível de ferros retorcidos. Pior, incendiou-se.
Seu companheiro de viagem, Haroldo Alves, foi projetado para
fora do veículo (na época, os carros não tinham cintos de segurança) e foi
socorrido por alguém que trafegava na estrada naquele momento e encaminhado, em
estado gravíssimo, à Santa Casa de Taubaté, onde permaneceu por muitos dias em
coma. Presume-se que o cantor tenha morrido na hora. Se não morreu, seu
derradeiro momento deve ter sido dos mais sofridos. O fogo “devorou” por
completo o corpo de Francisco Alves, carbonizando-o, deixando-o irreconhecível.
O motorista do caminhão sofreu apenas ferimentos leves. Assim que a notícia do
desastre foi divulgada, o País, virtualmente, parou, em estado de choque. As
emissoras de rádio (todas elas, de Norte a Sul), interromperam de imediato suas
programações normais e passaram a transmitir programas especiais, com os
sucessos do cantor, entremeados por novas notícias.
O sepultamento, no Cemitério São João Batista, no Rio, teve
cenas surreais, de histeria coletiva. Uma multidão, estimada por volta de um
milhão de pessoas, acompanhou o corpo de Chico Alves à sua ”última morada”. Seu
enterro pode ser comparado ao de Ayrton Senna, em São Paulo, 42 anos depois, em
1994. O jornal “O Dia”, na edição de 29 de setembro de 1952, descreveu da
seguinte forma a despedida dos cariocas do seu filho ilustre e grande ídolo: “Era
impossível ter-se uma idéia exata do número de pessoas que formavam aquela
fabulosa onda humana, que provocou colapso no trânsito, acompanhando os
funerais de Francisco Alves. Cem mil, duzentas mil pessoas? Quem sabe ao certo,
se a vista do repórter se perdia ao longo de ruas e avenidas da zona sul? Foi
um espetáculo comovente, o coroamento das manifestações de dor popular pela
morte trágica do Rei da Voz. Durante as últimas 48 horas, a cidade se
transformou de tal modo, ligando-se ao destino de um artista por vinculo do
mais profundo sentimentalismo, que até parecia não ter morrido apenas um
seresteiro de alta classe, mas um místico de poderosa influência sobre multidão
deslumbrada. Era o milagre do talento de um cantor, que soube interpretar, como
ninguém, as tristezas e as alegrias, as venturas e os infortúnios da sua gente,
dizendo no lirismo da sua voz harmoniosa e tropical o que não se pode expressar
em meras palavras. (...)” E tudo isso ocorreu há já 64 anos que, todavia, na
minha memória, parece ter sido apenas ontem...
Boa leitura!
O Editor.
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Quando menina ouvia a minha mãe falar dessa noite trágica. Ela estava na Praça de Esportes, quando uma voz anunciou a morte do cantor, acabando com a festa.
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