Meros
tijolos
A dúvida sensata, na medida certa, não é, como muitos
desavisados entendem, falta de fé. Trata-se de um ingrediente que promove a
evolução espiritual e melhora as idéias, consolidando as convicções.
Estabelece, depois de esclarecida, bases sólidas para as crenças que, a partir
de então, se tornam inabaláveis.
Mas a dúvida é como o sal. Se a utilizarmos além da medida,
tornará as idéias intragáveis, como acontece com as comidas salgadas em
demasia. Conheço pessoas, por exemplo (e não são poucas), que ainda não
acreditam que o homem tenha pisado na lua. Há, inclusive, um site na internet
que reúne os que pensam dessa maneira. Argumentam que a corrida espacial se deu
no contexto da guerra fria. E que na ocasião, tanto os Estados Unidos, quanto a
extinta União Soviética se utilizaram de todos os recursos, inclusive ilícitos,
para fazer propaganda de seu respectivo regime. E que a descida na lua foi uma
dessas “mentiras” com fins promocionais.
Dizem até – com uma convicção que não se sabe de onde vem –
que as imagens de televisão, que mostraram Neil Armstrong pisando, em 20 de
julho de 1970, no solo lunar, foram, na verdade, gravadas em algum deserto da
Terra, no Saara, talvez, ou, quem sabe, até em próprio território
norte-americano. É o tipo de dúvida ridículo. É o caso do “sal” usado em
excesso.
Se o usarmos, porém, na medida certa, o sabor das idéias
será delicioso para o espírito. A crença, sem fundamento, não é fé, mas
fanatismo, sustentado pelos alicerces apodrecidos dos dogmas. Reitero, porém,
que a dúvida deve ser usada com parcimônia. Afinal, uma “pitada” não é o mesmo
que uma “tonelada”.
Quase todos, algum dia, nos julgamos – intimamente, no fundo
do nosso coração – mais importantes do que de fato somos, imprescindíveis até
para a sociedade, senão para a humanidade. A maioria cai em si e humildemente
admite que tem importância, mas não é indispensável e nem insubstituível. É
mero tijolo de um grande edifício, cujo projeto não se sabe quem fez e nem se
conhece a finalidade. Usam o tempero da dúvida na medida certa. Não são,
portanto, nem céticos empedernidos e muito menos fanáticos, que não admitem
contestação daquilo que acreditam.
Alguns, todavia, não agem com esse bom-senso. “Salgam” em
demasia idéias e convicções. Teimam em se julgar mais importantes do que são. O
tempo e os fatos, porém, se encarregam de abater seu orgulho. Via de regra,
essas pessoas descambam para o outro extremo, igualmente errado. Passam a se
considerar inúteis e dispensáveis. Também não são. É como se diz: “A virtude
está no meio”.
Vivemos em dois compartimentos distintos: o exterior e o
interior. O primeiro é o da convivência com outras pessoas, dos relacionamentos
– afetivos, sociais, profissionais etc. – caracterizado por intensa competição
e pouca cooperação (deveria ser o inverso). O segundo é o convívio conosco
mesmos, com nossas idéias, valores, convicções, pensamentos e sentimentos.
O ideal é que nossa vida seja rigorosamente equilibrada nos
dois planos. Ou seja, no cumprimento do nosso papel no mundo e no
enriquecimento espiritual, sem o qual teremos poucas chances de sucesso. Na
vida exterior, quase sempre, a tendência é a ostentação. Na interior, é o
bom-senso, o equilíbrio e o pragmatismo.
As pessoas não-dogmáticas (diria, pragmáticas), têm sede e
fome de conhecimentos que são insaciáveis. Mantêm-se permanentemente ligadas ao
mundo, dispostas a aprender tudo o que possam. São, pois, as que têm as maiores
chances de mudar, sem que tais mudanças impliquem em traumas. Tão logo
descubram que aquilo em que acreditavam não é, rigorosamente, verdadeiro, mudam
de opinião, sobre os outros ou sobre si mesmos, sem nenhum problema. Sabem
temperar suas crenças com o sal da dúvida.
Convenhamos, a descoberta das nossas limitações é sempre
complicada, pois fere nosso amor próprio. Mas é importante. Se quisermos
empreender conquistas, é indispensável sabermos onde estamos, o que somos e o
que queremos, para que possamos escolher a estratégia e os meios adequados para
a nossa evolução.
Não é necessário, claro, alardear nossas deficiências aos
quatro ventos. Se o fizéssemos, estaríamos nos depreciando, ou seja, utilizando
em demasia o “sal da dúvida”, ao duvidar de nós mesmos. Mas é indispensável que
identifiquemos nossas vulnerabilidades e nos disponhamos a corrigir o que
estiver incorreto.
Todos temos lá nossa importância, embora, reitero, não tanta
como desejamos. O filósofo Will Durant chega a esta conclusão, no livro
“Filosofia da vida”: “A maior parte de nós não passamos de simples
matéria-prima, meros tijolos dum edifício cujo plano não podemos conceber”. Não
há como contestar! E qual o problema de não sermos o telhado dessa construção?!
Boa leitura!
O Editor.
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