As
revoluções nacionais na América Latina
* Por
Cândido Mendes
A inserção da América
Latina na faixa periférica, evidenciada pelos exemplos do Chile, México, Brasil
e Argentina, demonstra, nos seus estágios mais adiantados, a implicação
profunda do nacionalismo e do desenvolvimento nas revoluções contra o sistema
colonial.
Vencida há mais de um
século a fase de conquista da independência política, essa área histórica
demonstra hoje a maturação do processo de tomada de consciência da contradição
entre a vigência de seu velho regime econômico e a implantação ampla de sua
soberania. Muitas vezes, antes de atingirem ao claro equacionamento de um
programa de emancipação, puderam revelar o aprofundamento daquele processo,
através da aceitação de fórmulas intervencionistas inéditas e de nacionalização
de amplos setores de sua economia, empolgados pelo sistema colonial. É esse
fenômeno que emprestou a certos processos expropriatórios mexicanos e chilenos
os indícios de uma postura pioneira, que veio a desembocar numa real política
de desenvolvimento.
Outra das notas
essenciais da emancipação em curso no hemisfério é a de evidenciarem alguns
desses países uma reação espontânea de suas forças produtoras ao antigo regime
colonial, iniciando, pelas próprias forças privadas nacionais, um inequívoco
esforço de industrialização. Encontra-se aí uma nova demonstração do grau de
maturidade dos processos emancipatórios da América Latina, em contraste com o
mundo afro-asiático. Neste estágio, em que o Brasil ocupa posição mais sólida,
o desenvolvimento assume, de fato, a tônica do processo. É numa fase como esta
que se pode apreender, já, a destrama entre o plano político e o econômico da
emancipação, verificando-se de que forma o seu sucesso definitivo dependa,
essencialmente, das vicissitudes desse programa e da capacidade nacional em
formular os modelos que integrem todos os fatores de produção desatados no seu
curso.
No panorama das
revoluções nacionais pelo desenvolvimento da América Latina, dever-se-ia
capitular, de início, os lances mais expressivos da decisão de suas
coletividades de romper com o sistema colonial, antes mesmo de formular
ostensivamente a plataforma econômica de emancipação.
Seria de se prever
fossem mais propensas a essas manifestações as áreas que experimentassem, de
forma mais intensa, as relações de proximidade com a economia dominante do
continente, como se deu com o México. A elas estariam também expostas as
relações que sofriam os efeitos de uma economia colonial mineira, na qual a
exploração direta daqueles empreendimentos se verificou pelas organizações
internacionais que se dedicam a essas atividades. Era este o caso do Chile, e
esse fato
não deixaria de avivar
a distinção entre as forças nacionais e as externas que laboravam em sua
economia como responsável pelo alto grau de politização desse país.
Registre-se, ainda, o contraste entre estas formas diretas e ostensivas do
sistema colonial - exacerbando as suas tensões -, e o que se verificou, por
exemplo, com o extrativismo agrícola brasileiro ou argentino, nos quais os
latifúndios entregues a atividades de exportação permaneciam, via de regra, nas
mãos das classes nacionais vinculadas ao sistema colonial.
A nacionalização das
companhias petrolíferas mexicanas em 1941, ou a expropriação dos principais
consórcios dedicados à exploração dos nitratos no Chile tem o mesmo ímpeto das
revoluções confiscatórias. Mas delas se diferenciam enquanto se inserem num
processo social adiantado, e ocorrem em coletividades diversificadas capazes de
realizar, efetivamente, uma política de desenvolvimento.
Via de regra, àquelas
manifestações antecedeu o funcionamento de instituições como a "Nacional
Financeira" Mexicana ou o Banco Central de Santiago, a indicar, de maneira
pioneira, a afirmação de uma política de desenvolvimento. Traduziam ambas a
formulação arrojada de um propósito de intervencionismo estatal destinado a
mudar a estrutura daquelas economias, numa época em que não se tinha atingido
ainda uma consciência clara do problema do subdesenvolvimento e da política
necessária à sua consecução. Não é sem razão que o pensamento dos economistas
latino-americanos, muitas vezes alicerçados nestas experiências iniciais, viria
a ter uma importância tão decisiva no delineamento completo dessa plataforma em
que hoje repousam as perspectivas de bem-estar social de todo o Terceiro Mundo.
As economias mexicana
e chilena permitem que se aprecie o caldear do processo emancipatório nos seus
dois pólos básicos: o da superação do sistema colonial, inclusive com o recurso
a providências expropriatórias, e o encaminhamento dessas economia para um
plano de racionalização geral do aparelho de produção. Ambos pressuporiam,
todavia, a precisar o ímpeto de suas revoluções, o trauma do confisco, a
experiência da execução concreta de medidas corretivas ou repressivas contra
explorações econômicas que se identificavam com a própria vigência do sistema
colonial.
Numa antecipação
válida para todo o resto do continente, mostravam o sentido exemplar que
apresentam, para a precipitação de uma consciência nacional, as medidas
relativas à apropriação dos recursos do subsolo. É o que se comprovaria com o
caso brasileiro, na polêmica da Petrobrás. Visando à discussão de um modelo
econômico relativo a uma exploração futura, ensejando um debate inteiramente
"de lege ferenda", pôde ainda assim constituir-se no episódio de
maior importância sensibilização das camadas populares não só para contradições
da estrutura colonial como para as medidas de reorientação completa da vida
econômica nacional reclamadas pelo desenvolvimento.
Numa economia como a
brasileira, tradicional, de formações coloniais que atuavam de forma laxa e
pouca ostensiva, medidas como a do monopólio estatal do petróleo teriam um
cunho dramático natural. Tornariam tangível, de forma imediata, a contradição
entre o regime extrativo clássico e o movimento de ordenação de todas as fontes
produtivas à economia nacional, exigido pela emancipação. No caso em tela, a
polêmica da Petrobrás efetuaria a ambientação acelerada do país às formas de
intervenção de base que impõe o desenvolvimento. Mas acima de tudo encarnaria o
verdadeiro projeto-símbolo definidor do sentido da transição que caracteriza o
atual momento histórico de países como o Brasil.
No tocante, por fim, à
espontaneidade do processo de desenvolvimento, a revolução brasileira é a que
apresenta os sinais mais alvissareiros de toda a faixa periférica.
Beneficiando-se do mecanismo tradicional de reações de uma economia extrativa
pobre, exposta a todas as incertezas de um comércio de pauta tropical, como o
do café, o país iniciaria a diversificação do seu aparelho produtivo, para aí
encaminhando, a cada retração do setor externo, a poupança amealhada. E mercê
do processo de substituição de importações, lançando-se à implantação nacional
de manufaturas de consumo.
Os anos do após-guerra
encontram já consolidada esta fase do processo, e orientado um território de
dimensões continentais para a formação de verdadeiro mercado interno, em que
uma relativa dispersão de renda já possibilitava à massa da população induzir a
constituição de uma indústria de bens de consumo geral para seu abastecimento.
Ao racionalizar esse
esforço mediante a plataforma do desenvolvimento, o Estado assumiu a tarefa de
assegurar a provisão dos setores de infra-estrutura, bem como a de reunir os
capitais para os setores de base, de modo que se complementasse o processo
naturalmente gerado, e viesse o país a gozar de um aparelho de produção
efetivamente integrado.
Definia-se, no nosso
caso, de início, o caráter supletivo dessa intervenção, e o firme
estabelecimento da burguesia industrial, nos setores a que já a conduzira o seu
espírito empresarial.
A solidez das linhas
gerais do processo brasileiro é ressaltada pelo seu confronto com o exemplo
argentino, no qual o impasse da revolução peronista se define, exatamente, pelo
contraste de suas características.
Gozando de uma pauta
rica de exportações apoiada no trigo, na carne, nas frutas não tropicais,
constituindo um regime de população contida, e receitas externas
tradicionalmente estáveis e crescentes, a Argentina surgiria com índices econômicos
que superariam os dos países subdesenvolvidos. Situou-se, juntamente com as
especialíssimas economias do Uruguai e da Venezuela, entre as nações cuja renda
per capita apresentava outra magnitude que as do resto do continente.
A prosperidade
tranqüila do regime que, aproveitando ao máximo os benefícios de suas planícies
aluviais, permitia que se falasse em legítima "vocação agrária" de
seu aparelho econômico, experimentaria, entretanto, um colapso radical no
após-guerra de 45. Seus produtos passaram, então, a concorrer com os das áreas
desenvolvidas, a ponto de se verem incluídos entre os "excedentes"
internacionais, aos quais se negaria até a esperança de melhoria cíclica, ainda
que fugaz, como acontece com os produtos de pauta tropical, na faixa periférica.
Seu afastamento dos
mercados tinha um aspecto estrutural definitivo, expondo-a a uma redução de
suas receitas cambiais, sem perspectivas de reação, como aquela a que já se
ambientara a economia brasileira.
Nesta época, que
coincide com a emergência do peronismo, caracteriza-se para a Argentina a
quadra histórica em que foi obrigada a abandonar, da noite para o dia, o seu
sistema clássico de vida econômica e levada a se lançar num processo
desesperado de industrialização substitutiva. Via-se forçada a realizar,
rapidissimamente, um esforço que já iniciara o nosso país desde o começo do
século. E tal circunstância colocava numa perspectiva dramática os setores de
altas rendas da economia argentina, que não se tinham preocupado em deflagrar
no país, mediante inversões industriais, o mecanismo espontâneo de substituição
de importações, já amplamente desenvolvido no Brasil.
É nesse sentido que,
no período em questão, e ao contrário de quase todo o resto do Hemisfério, a
Argentina se caracterizará não pela expansão, mas pela paralisia ou mesmo
redução de sua renda per capita. Lançando-se à mudança acelerada da estrutura
do seu aparelho de produção veio ela a se ressentir da ausência flagrante de
uma burguesia nacional interna para realizar a diversificação de sua estrutura
econômica. Pela própria dinâmica do processo de substituição de importações,
foi o Estado obrigado a intervir numa vasta série de manufaturas não
essenciais, que, no caso brasileiro, estavam de há muito cobertas pela
iniciativa privada.
Escasseariam, por
força, os recursos para os investimentos de infra-estrutura ou para as
atividades básicas de transformação em que se deveriam apoiar as indústrias de
bens de consumo, apressadamente instaladas no país.
A artificialidade e a
urgência da mudança se refletiriam necessariamente na alteração radical da
ocupação da mão-de-obra argentina. Enquanto isto, a nova organização
industrial, de base dominantemente pública, viria a disputar o seu mercado de
trabalho às áreas rurais organizadas muito mais em termos de economia de
exportação do que de subsistência. Vale dizer, em termos latifundiários e
rigorosamente privatistas, de largo poder de controle, ainda, sobre o conjunto
da economia platina.
À industrialização
seguiu-se uma intensa licitação salarial, ao contrário do que se deu com o caso
brasileiro. O resultado final seria um redistributivismo profundo da renda
nacional, que não se fez acompanhar, entretanto, de um aumento substancial do
produto. Basta verificar que, durante a década iniciada em 46, verificou-se um
aumento de 47% para 60% na participação do salariado na renda nacional,
enquanto não foi superior a 3,5% o crescimento do produto argentino. O largo
processo inflacionário que passou a castigar a Argentina teria como sua
conseqüência mais profunda o fato de representar um redistributivismo anormal
de renda, sem induzir, ao mesmo tempo, à expansão do processo econômico. De se
ter realizado, paradoxalmente, num panorama de estagnação e paralisia do
produto nacional.
Seu efeito seria fatalmente
o colapso da própria unidade do processo e a ruptura de qualquer possibilidade
de integração real pelo desenvolvimento, da velha e nova ordem social e
econômica argentinas.
Este dualismo vem hoje
subvertendo dramaticamente a República do Prata. Já se caracterizara, num
primeiro momento, pela radicalização do peronismo e anti-peronismo, que dera
excepcional violência - inclusive institucionalizando, pela primeira vez, o
fuzilamento nas atuais insurreições civis do hemisfério - ao movimento militar conservador
de Lonardi e Aramburu. Ele consubstancia a instabilidade contínua do
"Frondizismo" obrigado a toda descaracterização de sua plataforma
política, para segurar a simples vigência, cada vez mais nominal, de seu
mandato. O regime militar que veio, finalmente, a substituí-lo, faria somente
tornar ostensiva a impossibilidade de qualquer conciliação ou integração,
levando a Argentina à opção pelo pólo da velha ordem, no alento que lhe possa
dar, ainda, a força das armas. O classicismo das terapias anti-inflacionárias,
postas em vigor pelo novo ministério Alzogaray, no governo Guido, pode levar a
Argentina, numa nova nêmese do desenvolvimento, a se transformar num estrito
Estado neocapitalista precário, destituído de significação histórica.
O risco desses
desfechos em nações dotadas excepcionalmente para a realização de ampla
promoção social das áreas periféricas só faz sublinhar a importância do desafio
histórico hoje vivido pelo Terceiro Mundo. Seu desenrolar é função não só dos
recursos que estiveram ao alcance desses países, ao iniciarem o seu processo
emancipatório, mas das contradições que puderam surgir na sua continuação,
obrigando-os a opções que conteriam um desfecho fatal para a manutenção de sua
experiência histórica.
É nesse sentido que,
no remate do presente trabalho, o "Frondizismo" será estudado como
uma dessas alternativas que, na dialética das contradições de um movimento
emancipatório, logrou devolver um dos processos mais significativos da faixa
periférica ao plano de uma revolução abortada.
Ela sublinha, em
contraste, a solidão dos países que ainda permanecem no campo de uma genuína
revolução nacional pelo desenvolvimento e vêem que a riqueza do seu processo,
ou o grau de maturação a que já tenham atingido não representam por si só penhor
de redução dos riscos ou ameaças à sua definitiva consolidação. Tal perspectiva
se torna especialmente significativa para o processo brasileiro, onde correm
hoje, paralelos, os sucessos do desenvolvimento e o vulto das contradições
acarretadas no seu curso pelo "desenvolvimentismo". No decorrer de
todo o presente trabalho, o "caso brasileiro" será, nesses termos, o
exemplo constante na investigação da experiência histórica que realizem as
revoluções nacionais pelo desenvolvimento. Da análise da formulação desta
política à discussão das contradições que hoje ameaçam a unidade do seu
processo. Elas permitiram definir, no seu caráter constantemente ameaçado, no
ineditismo das soluções e respostas que lhe caberiam encontrar a cada momento,
o aspecto de "desafio histórico" que caracteriza a experiência hoje
vivida pelo Brasil, enquanto engastado na faixa periférica. Em tal cometimento,
entretanto, o seu valor seria apenas de exemplo dessa tarefa dos meados do
século XX, que é a extinção dos "proletariados históricos"
contemporâneos.
Assim é que, no
capítulo subseqüente, competiria inicialmente fixar as características formais
desta categoria do proletariado histórico, que hoje identifica todo o Terceiro
Mundo, em função das específicas articulações históricas do Ocidente, como
primeira cultura ecumênica.
Traçados os seus
principais tópicos, o painel concreto das várias respostas da faixa periférica
à subtração da sua capacidade de protagonismo pelo Ocidente, esta análise
definiria as condições concretas de emergência do Terceiro Mundo como sujeito
histórico, através do movimento conjunto do nacionalismo e do desenvolvimento.
(Nacionalismo e
desenvolvimento, 1963.)
*
Jurista, membro da Academia Brasileira de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário