Véus
do martírio
* Por Daniel
Santos
Às tantas, uma senhora entrou no ônibus
esbaforida, suarenta, com duas sacolas de supermercado e pernas inchadas de
varizes, mas não foi por educação ou mera formalidade de cavalheiro que lhe
cedi o assento.
Não. De pé no corredor, o corpo
vacilante conforme o coletivo avançava, seus olhos transmitiam desamparo. Mas
percebi que havia certo receio em revelar fragilidade neste mundo que proclama
a eficiência.
Por isso, talvez, aprumou-se o quanto pôde
como se quisesse convencer a todos da própria autonomia. Só a mim não
convenceu. Percebi sua agonia e, por solidariedade, levantei-me e lhe apontei o
lugar vago.
Antes inseguro, seu olhar parecia agora
intrigado. Vi que não entendera meu gesto ou se fizera de desentendida. Afinal,
em vez de lhe dar alívio, a gentileza denunciava o que ela queria esconder: a
fadiga.
Agradeceu-me com certa soberba e um quê
de cumplicidade, como a dizer “isso fica entre nós dois”. E, assim, prosseguiu
viagem, o suor descendo como véus de um martírio que a constrangia e a
sujeitava.
* Jornalista carioca. Trabalhou
como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da
"Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo".
Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Cena pobre de um viver miserável. Real, bem real.
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