O reencontro
* Por
Geraldo França de Lima
Foi pouco antes da
Missa do Galo, enquanto os povos se aglomeravam no Largo da Matriz, que
Gutemberg Roldão viu-a, pela primeira vez: - sentiu, num estremecimento
estranho, a sensação de um reencontro: já se conheciam sem saber de onde: dois
seres exaustos de recíproca procura ansiosa, que, afinal, se reachavam num
ponto predestinado: - neste mundo varado, estradado e bifurcado, o reencontro
se dava na pequena Serras Azuis!
A praça, profusamente
iluminada: lâmpadas se acumulavam em cada canto. De maneira que Gutemberg pôde
vê-la bem claramente vista: sua beleza serena e assentada marcava-lhe a vida
para todo o sempre. Viu-a como um todo que impressiona e fixa definitivamente
um momento: nem lhe reparou nos detalhes: - a tez clara, os cabelos negros e
aqueles grandes olhos verdes. E tudo assim, de supetão, tão rápido. Teve,
porém, tempo para senti-la também afetada, pela recíproca daquele olhar. O modo
especial com que ela disfarçadamente o fitou pela quina dos olhos, rasgou-lhe
uma estrada de ventura, como se o mundo parasse naquele instante.
Quando o Efigeninho e
o Jovem Telegrafista chegaram, Gutemberg contou-lhes aquilo que considerava uma
estranha visão.
- Uma mulher bonita é
sempre assim. Gente de fora, chegaram hoje, pernoitam e seguem amanhã - disse o
Efigeninho, rindo-se.
- Quem será? -
perguntava Gutemberg, hipnotizado.
Ninguém tinha idéia.
Iam conversar mais um pouco, andando, fazendo hora para a ceia.
- Se vocês não se
importam, poderíamos dar umas voltinhas pelas ruas: talvez a víssemos - sugeriu
Gutemberg.
Procuraram-na. Pela
praça. Pelos hotéis. Pelo Largo da Escrava. Nem sombra.
- Que jeito tem ela? -
perguntou o Efigeninho.
- O da beleza da
inesquecibilidade, o da definitibilidade - disse Gutemberg, aereamente.
- Assim, você não
ajuda - respondeu Efigeninho. - Dê-nos os traços materiais, reais e acessórios:
e com quem estava?
- Saía sozinha da
Matriz: nossos olhares se chocaram.
- Não faço a menor
idéia - disse o Jovem Telegrafista.
- Não é daqui.
Gutemberg não ouvia.
- Foi-se embora -
murmurou num lamento...
- Então vamos também.
Natal é pretexto para festas, bebedeiras, vendas e comedorias - disse o
Efigeninho.
Gutemberg
acompanhou-os, silencioso, concentrado, alheio. Jovem Telegrafista compreendeu
que gostaria de prolongar a busca.
- Vamos procurá-la
mais um pouco - disse.
- Se vocês não se
incomodam, talvez esteja passeando: a noite está toda acordada.
Procuraram-na: em vão.
Quando perceberam, estavam na porta do Austríaco: pensaram em entrar para um
abraço de festas, mas ouviram vozes desconhecidas e desistiram.
O Efigeninho estava
entusiasmado: naquela noite fazia estréia, no bordel do Zário, soberba mulher
encomendada de fora, que ele vira na rua e cobiçava.
- O pecado é a grande
felicidade do homem, é a afirmação. A virtude, a treva - dizia e dirigindo-se a
Gutemberg, sacudiu-o pelo braço: - acorda, homem!
Gutemberg acordou e
falou com convicção: - Tenho certeza de que ela é de Serras Azuis.
- Então,
tranqüilize-se - disse o Jovem Telegrafista. - Em Serras Azuis nada se esconde,
tudo se descobre.
Chegavam à Confeitaria
Cruzeiro: o mulherio já a apinhava: a orquestra do Zé Pê gemia um tango: a
fumaça dos cigarros enegrecia o teto da esteira, abafando o ambiente. A mulher
que devia estrear vinha chegando, já sob a mira do Vidigal, cidadão
circunspecto, provedor da irmandade religiosa mais importante da paróquia.
O Rau-Ró-Ró, fiscal
das mulheres do Zário, chamou o Efigeninho a um canto: naquela noite não seria
possível, porque depois do Vidigal, a mulher seria do Carrijinho, o promotor.
- Do Carrijinho? Pois
então desisto para sempre.
O ambiente da Cruzeiro
estava carregado.
- Ali, no Peto -
sugeriu Gutemberg - come-se bem e se está mais arejado.
Foram para o Peto.
Jovem Telegrafista e Efigeninho comeram e beberam muito. Gutemberg continuava
impressionado, abstrato.
- Tenho certeza: o
jeito dela não me engana: - é de Serras Azuis.
- Você está
assombrado, calma! - disse o Jovem Telegrafista.
A madrugada ia alta:
Efigeninho mal se mantinha em pé. Saíram. Efigeninho tentou cantarolar a grande
valsa local:
"Serras Azuis
dos meus
sonhos..."
Despediram-se: cada
qual tomou o seu rumo. Gutemberg voltou ao Largo da Matriz na tentativa de
encontrar qualquer coisa daquele olhar. Depois recolheu-se. Na manhã seguinte
levantou-se pensando nela. Conversou com a Tia Simíramis. O dia abafava; o sol
queimava. À tardinha saiu: encontrou-se com Efigeninho no Largo da Escrava:
alguns meninos retardatários pediam festas. Efigeninho bocejava com sono e
ressaca. De repente, Gutemberg assustou-se, agarrou-lhe o braço e sacudiu:
- Espia, ali: - é
ela... Olha... Ali! - disse, apontando discretamente.
Efigeninho tornou-se
sério, espantado:
- Você não exagera? É
Lígia...
- Que importa? Que
Lígia? - disse Gutemberg, já encaminhando-se para onde estava ela, com
Rosemunde.
Efigeninho deteve-o:
- Você não a conhece?
- Não. Quero conhecê-la
agora. Vamos. Você está empacado...
- É Lígia...
- Que Lígia? Você me
enerva.
... - das Graças.
- Ora, que graças? -
dizia Gutemberg, impaciente, ansioso.
Efigeninho pôs a mão
em seu ombro, segurando-o, e, cheio de pesar:
- Escute, homem, é
Lígia das Graças O'Neil de Paiva...
Gutemberg estremeceu:
tornou-se lívido, desapontado como se lhe fugisse, de repente, a luz.
Efigeninho continuou,
solidário, sinceramente penalizado:
- É a filha do Paiva,
a que se formou. Tem estado no colégio, e depois dos estudos, vive mais para o
Cachimbo. Vem pouco à cidade. Você nunca a tinha visto antes? Não é possível!
As emoções, a
circulação e o entusiasmo de Gutemberg estavam paralisados e se sentia
destruído, esfriado. Tendo de aceitar a verdade dos fatos, só pôde murmurar, à
guisa de uma autoconsolação:
- Em todo o caso, eu
tinha razão: é de Serras Azuis. É uma pena, é uma lástima.
- Então, ela te fez
tal impressão? Não se pensa nisto nem se toca mais no assunto. É Paiva, Gute, é
Paiva do Conflito - dizia Efigeninho com um começo de preocupação.
- Me fez uma impressão
absoluta: qualquer coisa diferente.
- Lembre-se - insistiu
Efigeninho - não pode passar de um incidente.
- Incidente? -
perguntou Gutemberg arrasado.
Calados e quietos
deram uns passos: o calor aumentava: a noite carregava-se.
- Vai cair um
pé-d'água - disse Gutemberg arrasado.
- Parece.
- Estou cansado,
Efigeninho, vou para casa. E você?
- Ainda fico por aqui.
Gutemberg tocou para a
botica do Faria: deu um dedo de prosa e de repente perguntou:
- Faria, o Conflito
foi uma sangueira terrível, não?
- Sim. É o que todos
dizem. Por que você me pergunta?
- Por nada. Me veio à
mente.
Começava a chover:
Gutemberg apressou-se para casa. No seu quarto pensava naquele olhar cheio de
beleza, interessado de Lígia das Graças. Estava, realmente, hipnotizado,
fascinado, encantado.
Adormeceu
profundamente: sonhou com ela. Na manhã seguinte esforçava-se para reconstituir
o sonho. Só se lembrava nitidamente de ter-lhe dito:
- Lígia das Graças, tu
me desgraças...
(Serras azuis, 1961.)
* Romancista e
professor, membro da Academia Brasileira de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário