Conta comigo!
* Por
Marcelo Sguassábia
Contar os milhares de
maços de dinheiro guardados em casa era ao mesmo tempo seu trabalho, sua
diversão e sua paranoia. Cada maço perfazendo dez mil, em cédulas de valores
variados. Quando a contagem chegava ao fim, cismava que alguém - não se sabe
quem, já que nem faxineira entrava em seus domínios - poderia ter mexido nos
primeiros montes conferidos, e a contagem recomeçava do primeiro bolo ao
último, num ciclo doentiamente interminável.
Banheiro rima com
dinheiro. E não por acaso, dizia ele. Pisos e azulejos eram apenas
revestimentos de fachada, que escondiam cofres e mais cofres milimetricamente
alinhados e abarrotados de bufunfa. Os quartos e a ampla sala em L jamais viram
cor de tinta. Sobre o reboco dos cômodos, ele mesmo foi aplicando um peculiar papel
de parede, feito de lindas e sortidas cédulas, capazes de levar o Tio Patinhas
a orgasmos múltiplos.
O bloco de notas
próximo ao telefone era literalmente um bloco de notas, com recados e lembretes
escritos sobre o dinheiro. As anotações se referiam, invariavelmente, a
questões financeiras: o total amontoado em junho, julho, agosto, setembro e
assim por diante - mês a mês, ano a ano, ao longo das décadas de acumulação.
Tinha, é claro,
dinheiro rendendo no banco em diversificados fundos. Tão logo creditados os
juros do mês ao saldo, ia até a agência, sacava a quantia relativa aos
rendimentos, contava para ver se conferia com os índices divulgados nos jornais
e corria em seguida para devolver a dinheirama ao caixa, a fim de juntar o juro devidamente aferido ao total
acumulado. Desconfiava que o banco pudesse um dia lhe passar a perna. E dá-lhe
esponjinha molha-dedo, dia e noite, noite e dia.
Quando achava que a
inflação estava corroendo demais o poder de compra do seu feudo de dinheiro,
pegava uma boa parte e operava como agiota, emprestando em espécie e recebendo
também em espécie, com acréscimo de juros imorais. Sua montanha monetária
ganhava então valores a mais, a serem contabilizados assim que recebidos.
Em quase meio século
de desmedida poupança, havia testemunhado várias trocas de moeda. Cada ocasião
dessas era para ele motivo de imensa satisfação íntima. Juntava tudo o que
tinha em comboios de caminhões-baú, alugados exclusivamente para o transporte
dos valores, e procedia à troca pelas cédulas novas, mesmo que as antigas
continuassem valendo ainda por um bom tempo. Tinha com isso o pretexto para
contar tudo outra vez, agora em papel novinho e cheirando a tinta fresca. Em
questão de poucos dias seus cofres ganhavam novo suprimento, o papel de parede
do lar-rico-lar era atualizado e o bloco de notas, gasto e todo rabiscado,
modernizava-se em cédulas virgens.
Tudo ia muito bem, até
o dia em que, após meticulosa contagem, deu pela falta de R$1. Descartada a
possibilidade de que houvesse entrado alguém em casa, ele começou a desconfiar
de sua própria capacidade de contar com exatidão e eficiência. Sabia que, mais
cedo ou mais tarde, essa hora iria chegar. E junto com ela o impasse insolúvel
de não poder confiar em ninguém para levar adiante a compulsão. Além de uma
certa confusão aritmética, que subjetivamente atribuía à idade avançada, notava
também um tremor anormal nas mãos, já sem impressões digitais de tanto contar
dinheiro. Mas não procurou ajuda médica: teria que se desfazer de algumas notas
para isso.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Mesmo com todos os cuidados, imagino que o contador tenha perdido bastante dinheiro ao longo dos anos. Nossa inflação de décadas impossibilita uma adequada correção monetária.
ResponderExcluir