Cadeiras
rangem, aplausos cicatrizam...
* Por
Marta Goes
Descobri como
jornalista a delícia dos bastidores, de ensaios mais divertidos que o
espetáculo pronto, como massa crua de bolo lambida nas pás da batedeira.
Gostava de entrar no teatro com luz de serviço, de ver os atores no palco, meio
ofuscados, tentando localizar o diretor em algum lugar misterioso na platéia.
Descobri as pessoas do teatro. Não os atores, os diretores, os cenógrafos, mas
os técnicos, as camareiras, os bilheteiros.
Assisti, em 1983, ao
ensaio geral de Romeu e Julieta, dirigido por Antunes Filho. Ia escrever uma
reportagem e estava quase tão nervosa quanto os próprios artistas, porque o
assunto concorria à capa da revista em que eu trabalhava, a IstoÉ, e eu nunca
tinha escrito uma. Era uma tarde sem nenhum glamour no teatro, com a platéia
vazia e providências técnicas em andamento. Quando a apresentação acabou, eu
tinha esquecido reportagem, revista e o prazo de fechamento da reportagem, e
nada mais tinha importância, a não ser a morte, em Verona, de dois meninos que
só existiram no palco.
Quando a peça é minha,
gosto de me sentar na platéia e observar o público. O riso e o silêncio total
me tranqüilizam igualmente; o ranger de uma só cadeira já me aflige. Quando
Prepare seus Pés para o Verão, meu primeiro texto, foi montado no Off, em São
Paulo, em 1987, fiquei muitas vezes no bar desse adorável teatrinho, para ouvir
os risos lá dentro. A diretora, Gecila Sampaio, tentou me mostrar que era
possível gostar sem rir. Eu acreditava, mas preferia uma confirmação mais
óbvia, sobretudo porque era comédia. Só com Um Porto para Elizabeth Bishop é
que descobri o valor incomparável do silêncio compartilhado.
O aplauso é uma
experiência cicatrizante, reconstituinte. Pensei nisso muitas vezes, ao longo
da carreira da Bishop, especialmente na noite da Flip, em Paraty. É um prazer
que se acumula no coração como uma fortuna. Rende bônus de segurança, alegria e
gratidão.
A crítica ruim sempre
foi uma ameaça. Por isso, me incomodou mais como jornalista que como autora
teatral. Temer a opinião alheia é um tormento que não escolhe o alvo pela profissão.
Provavelmente porque fui jornalista jovem e escritora tardia, já lidava com
esse fantasma antes de ver encenada a minha primeira peça. De tão conhecido, o
fantasma foi ficando cômico: o dia em que iam descobrir que eu era uma fraude.
Assim, diante da primeira crítica negativa, vivi por algumas horas o papel da
desmascaradinha – para descobrir, em seguida, que nada havia mudado. O medo da
crítica ruim é infinitamente mais lesivo que ela própria.
Tirei o nome de um
texto só porque os atores fizeram mudanças que achei exageradas. Não queria
perder a imagem de “delicada”. A crítica adorou, a peça bombou e está em cartaz
há três anos. Eu tive de voltar para a análise. A peça chama-se, irônicamente, Divã.
(Final feliz: eles me aceitaram de volta à turma. E tive alta.)
Chico de Assis
compartilhou generosamente seus conhecimentos, acumulados desde os seminários
de dramaturgia de Augusto Boal no teatro de Arena, nos anos 60. Freqüentei suas
aulas preciosas no teatrinho da rua Teodoro Baima, há quase vinte anos.
“Aprender a escrever teatro exige uma relação de mestre e discípulo, um vínculo
entre pessoas que amam o mesmo assunto”, ensina o autor de Missa Leiga. Essa é
uma das razões que fazem de Chico um mestre.
Quando estou na dúvida
se uma peça está caminhando na direção certa, consulto meus filhos Antonio e
Maria Prata (se Maria não chorar, ninguém vai chorar). Se continuar na dúvida,
consulto Fauzi Arap. Além deles, ouvi, no ano passado, os dramaturgos do grupo
de Samir Yazbek. Grupos de dramaturgia oferecem bons palpites técnicos e ainda
antecipam para o autor o efeito que suas palavras produzirão sobre futuras
platéias: risos, silêncios totais ou cadeiras que rangem com eloqüência.
Uma das lições que aprendi
com Fauzi Arap: “Exagero é teatral”.
Outra lei de Fauzi:
depois de uma hora de espetáculo, evite introduzir novos personagens. O
espectador (e, sobretudo, o marido da espectadora) precisa ter certeza de que
aquela história vai ter fim.
Bons diretores
interferem no texto como bons editores: deixam visível o que ele contém de mais
importante, de melhor. Diretores recorrem ao cenário, à luz, ao ritmo, às
marcas. Editores escolhem a melhor foto, dão o título certo, a legenda, o olho.
O que os editores não conhecem é a alegria, depois, de chamar um grande ator
para contar aquela história aos leitores.
Descemos de Petrópolis
no ônibus cor de vinho da Única: a amiga, a empregada mocinha e eu. Meu pai fez
mil recomendações e nos deixou, boquiabertas, no saguão do teatro João Caetano,
na Praça Tiradentes. A peça era My Fair Lady e, aos 9 anos, me senti
arrebatada. Ouvi o disco e cantei as músicas durante semanas, até toda a
família implorar – pelo amor de Deus! – uma trégua. Por fidelidade a Bibi
Ferreira e a Paulo Autran, não pude me render a Audrey Hepburn e a Rex Harrison
no filme. E, anos mais tarde, desenvolvi a teoria de que não existe coisa
melhor do que peça de adulto para fazer uma criança se apaixonar por teatro.
Paulo Autran e Bibi Ferreira na veia, costumava receitar. Mas aí me lembrei do
fascínio quase aterrorizado que experimentei ao ver Pluft, o Fantasminha no
Tablado. E não soube mais o que sugerir para estreantes.
(Texto transcrito da
Revista Piauí).
*
Jornalista, dramaturga e roteirista de cinema e televisão. Autora da biografia
de Alfredo Mesquita (Editora Terceiro Nome).
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