A saga de um jardim
* Por
Rubem Costa
“No
Botafogo sonhei
Os
meus sonhos de criança.
Foram
tantos que nem sei,
Quase
perdi a lembrança,
Mas
vivem dentro de mim,
Como
o meu velho pião,
Girando
sempre sem fim
No
pulsar do coração”.
De um antigo cantar,
recolho esta estrofe que compus, há anos; em um dia qualquer, quando na alma,
inundando emoções, chovia saudade.
Assomou-me de repente
a comoção ao saber pelo jornal que o Condepacc tombou a Praça Luís de Camões,
florida paisagem que, no meu tempo de menino, a gente só conhecia como Largo ou
Jardim da Beneficência Um recanto de paz onde caminharam meus passos e floriu
minha vida. Situado entre ruas seculares — Onze de Agosto, Saldanha Marinho,
Marechal Deodoro e Sebastião de Souza — o quadrilátero guarda na sua geometria
a saga de outras eras, de uma cidade que, assolada pela febre amarela no fim do
século XIX — ressurgiu das cinzas, erguida pelo trabalho de cidadãos prestantes
que deram de si em favor da coletividade.
A denominação popular
advém daí, por ser fronteiriço ao Hospital — Real Sociedade Portuguesa de
Beneficência — que a colônia lusitana, numa hora angustiante, construiu, não só
para sua gente, mas para a saúde de uma cidade inteira. Em torno da praça que,
falando da história, sussurra "estórias" e segreda romances, se
aglutinavam, então, nos dias em que vivi criança, soberbas residências de
cidadãos prestantes, casarões senhoris que, na ronda do progresso, o tempo
engoliu depois sem deixar vestígios. Do jardim onde brinquei construindo
sonhos, minhas lembranças de menino se evolaram céleres — em marcha ré — para
uma respeitável figura que no entorno da praça morava: Orosimbo Maia.
Bem ali na Rua Onze,
vizinho do hospital. Refazendo as contas, aflui-me que, então, começava a
década de 30 do século passado. Já nos meus dez anos, sabia de cor tudo que
havia em volta do largo e, sem trocadilho, até a cor da casa daquele homem
austero, pintada de sépia, revestida de grandes grades negras de ferro batido,
com jardim interno, onde floriam rosas. Meu pai, singelo funcionário dos
Correios e Telégrafo, o tinha em conta de grande político, louvando seu
trabalho em favor da cidade. De pés no chão, por ouvir dizer, eu o admirava,
sem saber como era sua figura. Morando na Saldanha Marinho, a caminho do grupo
escolar que ficava (e ainda está) na Andrade Neves, invariavelmente passava
todos os dias pela moradia, espichando o pescoço para descobrir lá dentro os
donos. Um dia em que voltava do colégio, vi abrir-se, rangendo, o portão de ferro
e dele sair um homem circunspeto, solene num terno de casimira escuro,
ostentando na barriga rotunda, como era costume na época, a correntona de ouro
que prendia na ponta o relógio patacão escondido no bolsinho do colete.
Espantei-me. Gordo, com a careca abafada no chapéu de feltro e bigodes em neve,
pareceu-me o Barão do Rio Branco, cuja foto bem conhecia estampada no livro de
História.
Com a prerrogativa de
alcaide da cidade, ereto, sem dar conta de minha presença, o velho subiu a pé
pela Marechal Deodoro até Andrade Neves para apanhar o bonde que o levaria à
Prefeitura. Foi a primeira vez que me deparei com Orosimbo Maia. Contei a meu
pai e ele me disse que, desfrutando por lei o direito de usar automóvel no
exercício de seu mandato, o guardião da cidade ia de bonde ao trabalho para não
onerar o erário público. Pensa na gente, me disse meu velho, é um dos
fundadores do Colégio Progresso. Um mês depois, seria setembro, numa
quarta-feira, Olívia, minha mãe, mandou-me vestir a roupa de domingo. Nessa
fala, em sua linguagem simples, ela estava a me dizer para enfiar-me dentro de
um terninho de brim bege acoplado a meias brancas e sapatos pretos. Roupa de
ver Deus. Era com ela que ia, todas as semanas, à escola dominical da igreja
presbiteriana e também servia para alguma festinha de aniversário. Vamos
assistir à inauguração do Teatro Municipal, disse-me explícita. Vai ser agora à
noite. Festa de gente grande. Nós do povo, tínhamos de assistir de longe, mas
extasiei-me. Ainda que pouco entendesse de estilo arquitetônico, Olívia me
afirmou que era o mais belo prédio de Campinas. Estava feliz. Feito só para
óperas. Nenhuma outra cidade do interior tem igual, enfatizou.
Assim que descemos do
bonde, com o pé na praça, ela acentuou: veja quanta gente importante está
chegando. Homens de casaca e mulheres elegantes de saias longas, espartilho e
chapéu frondoso, subiam solenes as escadas majestáticas do edifício enorme. Um,
dois, três, afinal, seis degraus para chegar ao hall de entrada. Orosimbo
estava lá para presidir à inauguração e homenagear o seu predecessor na
Prefeitura, Rafael Duarte, a quem se devia à construção daquela casa de
cultura, iniciada na década de 20. Ambos mal sabiam, que, trinta e cinco anos
após, todos os seus esforços iriam por água a baixo, graças à ação vandálica de
um alcaide energúmeno, Ruy Novaes que, talvez para compensar o que lhe faltava,
zombou da inteligência campineira, mandando arrasar o edifício à socapa, numa
madrugada triste.
Desse crime, entanto,
já não adianta lembrar. O que importa apenas é recordar que o Teatro foi
inaugurado em 1930 com a apresentação da ópera Il Guarany de Carlos Gomes, o
Tonico de Campinas. Inobstante diz a Bíblia (Provérbios 14:13) — “até no riso
tem dor o coração e o fim da alegria é a tristeza”. No dia 19 de abril de 1939
(lembro-me bem porque, um ano após, na mesma data, Olívia, minha mãe, que tanto
amara o Teatro, viria a falecer) eu, já então repórter do Diário do Povo,
haveria de atravessar de novo o Largo da Beneficência, rumo à casa sépia, para
cobrir o noticiário sobre o falecimento daquele que ficou na história como o
prefeito eterno de Campinas, o velho Orosimbo. Um homem que, tendo automóvel á
disposição, andava de bonde para não sacrificar o erário público, mas não se
furtou de proporcionar a Campinas um dos momentos mais emocionantes de sua
história, marcando seu nome como um dos Mecenas da cidade.
*
Professor, poeta e escritor, membro da Academia Campinense de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário