A morte da rainha de bateria
* Por
Rodrigo Ramazzini
Baseado em uma
história real.
Dia 08 de janeiro,
08h30min.
Um corpo é encontrado
na calçada de uma rua pouco movimentada, no bairro de Laranjeiras, subúrbio da
cidade. Uma mulher que se dirige ao trabalho é quem avista o cadáver e chama a
polícia. O local é isolado até a chegada da perícia, que aparece 55 minutos
depois e começa as suas avaliações. São duas horas de perícia. Não há
conclusões definitivas. São elas: corpo de uma mulher, na faixa de 30 anos,
aparentemente, atropelada por volta das 00h30min do mesmo dia, enquanto
caminhava no sentido centro-bairro da rua, por um carro, marca Volkswagen (foi
encontrado o símbolo do para-choque no chão, alguns pedaços de veículo e cacos
de vidros, mas que restam dúvidas se têm relação com o caso), que não freou,
pois não há marcas no asfalto e nem parou para prestar socorro. O corpo é
removido ao Instituto Médico Legal (IML) para identificação e verificação da
causa da morte. A princípio, não há testemunhas do atropelamento.
Dia 08 de janeiro,
13h25min.
Tobias chega para
trabalhar vindo de ônibus logo depois do almoço e encontra a frente do IML
agitada para uma tarde de sexta-feira. Trabalha como perito no departamento a
cinco anos. Uma multidão protesta pela morte da mulher no bairro de
Laranjeiras. Querem justiça! Mesmo sem a identificação oficial, pois não haviam
documentos junto ao corpo, os moradores sabem que se trata de Selminha,
manicure e rainha de bateria da escola de samba da localidade. Pessoa querida
por todos no bairro. Sem entender a confusão, apesar de intuir o motivo, Tobias
vence a aglomeração de moradores e ingressa no prédio do IML, troca algumas
palavras com colegas de serviço sobre o tumulto da entrada, a noite mal
dormida, o carro estragado e parte para a sua primeira perícia do dia. Tobias
encontra-se nervoso, mas acha que está conseguindo disfarçar publicamente. No
entanto, ao ver o corpo de Selminha em cima da mesa esperando ser periciado,
Tobias fica “gelado”, o suor escorre pelo rosto e axilas. Como imaginara, era
ela. O acontecido na madruga retorna com força em seus pensamentos. Em outro
canto do IML, os colegas comentam sobre o estado e as olheiras de Tobias
naquele dia.
Dia 08 de janeiro,
00h18min.
Tobias sai dirigindo o
seu carro depois de uma festa na casa de um amigo no bairro de Laranjeiras em
direção a outra festa, no outro lado da cidade. Tomou várias cervejas e fumou
três baseados na residência. No entanto, julgava-se em condições de dirigir.
Ele sai da casa do amigo, transita por algumas ruas e logo vê Selminha. Ela
caminha com o seu salto alto e calça justa, depois de ser largada em uma
esquina por um carro. Está a 30 metros de casa quando é abordada por Tobias.
Ela continua caminhando e ele acompanha com o carro vagarosamente ao seu lado.
Então, Tobias dirige algumas palavras Selminha, que replica esbravejando:
- Sai pra lá, eu
disse! Não te enxerga, não? Babaca... Já era! Perdeu!
Tobias para o carro.
Selminha segue caminhando, posicionando-se à frente do veículo, que ilumina o
caminho com os faróis altos. Ser chamado de “babaca” atinge o seu ego e
desperta uma raiva repentina em Tobias. Em surto, diz para si mesmo: “quem essa
vagabunda acha que é”? Ele acelera o carro. A intenção era desviar e passar
apenas próximo do corpo de Selminha ou atingi-la em cheio?
Dia 08 de janeiro,
08h01min.
Tobias chega com o
carro na oficina mecânica do Seu Waldemar, com o para-choque e parte do capô
amassado. É o primeiro cliente do dia. Diz para o mecânico que atropelara um
cachorro na noite anterior e que tem pressa no conserto, pois pretende viajar
nos próximos dias. Está agitado e com a fala embrulhada, o que causa estranheza
em Waldemar, mas que, naquele momento, ignora o estado e pensa logo depois que
Tobias deixa a oficina: “esses manés compram carro zero quilometro, fazem as
merdas e querem que a gente conserte as cagadas em tempo recorde. Aliás, por
que será que ele não levou em uma mecânica autorizada? Deve estar na
garantia... Azar o dele, eu que ganho”!
Dia 08 de janeiro,
13h50min.
Tobias está diante do
corpo de Selminha. É puro nervosismo. Arruma incessantemente as luvas de látex.
Já soube que a perícia no local não emitiu laudo conclusivo sobre o caso. A
mente inquieta faz mil perguntas para si mesmo, como se fosse uma metralhadora:
“digo que não estou apto a realizar esta perícia? Qual motivo alegar? Estou
sendo ético com a minha profissão? Confesso que sou o autor do atropelamento?
Ou faço uma perícia destoando da perícia do local e digo que a mulher morreu
por outro motivo? Será que isso me livraria? Faço ou não faço uma prova contra
mim mesmo? Ou faço uma perícia técnica e o destino que se encarregue do resto?
Deus! Por que eu fui escolhido para fazer a perícia da pessoa que tirei a vida?
O meu destino está nas minhas mãos”?
Dia 08 de janeiro,
14h00min.
O protesto dos
moradores do bairro de Laranjeiras em frente ao IML clamando por justiça chama
a atenção da imprensa. A falta de pautas no mês de janeiro faz com que a morte
de Selminha, em escala, vá tomando uma proporção nos meios de comunicação, do
local ao nacional. Fosse outra época do ano, a morte ganharia uma pequena linha
na editoria de polícia dos jornais. No entanto, agora, está no noticiário da
TV. O mecânico Waldemar assiste ao telejornal, enquanto beberica um café recém
passado pela esposa, antes de voltar para a oficina. O ato dos moradores ganha
um generoso espaço no noticiário, com diversas entrevistas e hipóteses sobre a
morte da rainha de bateria. A esposa de Waldemar comenta:
- Tem que ser um
monstro para atropelar uma pessoa e não prestar socorro, né?
O mecânico responde um
“É” solto. A ficha cai. Já sabe quem é o monstro e porque o carro não foi para
uma oficina autorizada. A questão que lhe inquieta é: “chamo a polícia ou peço
um dinheiro para ficar com a minha boca fechada”?
A repercussão nos
meios de comunicação faz com que a polícia empregue um grande número de
policiais na solução do caso. A resposta para a sociedade precisa ser rápida.
Dia 08 de janeiro,
14h08min.
A inquietude de Tobias
perante o corpo chama a atenção dos colegas, que o questionam se está tudo
certo. Ele responde que sim. O celular vibra em cima de uma mesa. É uma
mensagem do mecânico Waldemar. Eu sei de tudo. Quero R$ 30 mil na minha conta
até o final do dia, dizia. Uma sensação de “gelo” percorre a espinha dorsal. “E
agora? Tenho um cúmplice ou um delator?, pergunta-se. Se responder à mensagem
do mecânico pode estar assumindo a culpa pelo crime. Opta pelo silêncio. Decide
fazer a perícia de forma que gere dúvidas se houve ou não o atropelamento. Ou
seja, um laudo inconclusivo. Se não há testemunhas e indícios, não há crime.
Preciso me livrar dessa...”, pensa. Tobias começa a perícia...
Dia 08 de janeiro,
14h45min.
A polícia invade o
IML. Procuram por Tobias e o encontram a periciar o corpo de Selminha. Ele
tenta manter a calma diante dos policiais, mas sabe bem pelo qual motivo estão
ali.
- Você vai conosco,
Tobias!, diz um policial.
- Qual o motivo?,
pergunta ele.
- Já sabemos de tudo,
replica o policial.
- Tudo o quê?,
questiona.
- Você sabe!, rebate o
policial.
- Não sei!, ainda
tenta argumentar.
Para não chamar a
atenção da população que cerca o IML, Tobias é levado como uma pessoa comum,
sem ser algemado. No carro policial, que ruma para a Delegacia, pensa no
mecânico Waldemar. “Foi ele. Só pode. Mas não há indícios e testemunhas. Vai
ser a minha palavra contra a dele”, diz para si mesmo.
Para a surpresa dos
moradores que protestam e os jornalistas que cobrem o caso, a polícia diz que
encontrou o autor do atropelamento e concederá uma entrevista coletiva para
detalhar o caso.
Dia 08 de janeiro,
20h05min.
A cúpula da polícia
senta-se em um local previamente preparado para a entrevista. O ar de
satisfação é expresso visivelmente nos rostos. Há tempos um caso de repercussão
não tinha uma solução tão rápida dos órgãos de segurança. Era necessário dar
publicidade a isso. O chefe de polícia começa a entrevista dizendo:
- Já temos o suspeito
de ser o autor do atropelamento da rainha de bateria do bairro de Laranjeiras.
Trata-se de Tobias Mendes, perito do IML.
Um burburinho toma
conta da sala. Repórteres falam ao mesmo tempo. Até que uma voz se sobressai e
a questão de como o caso foi solucionado é feita.
- Vou tentar ser
didático, relatando passo a passo, de como chegamos até o autor...
Dia 08 de janeiro,
16h18min.
Depoimento. Na
Delegacia, Tobias, que durante o trajeto do IML até lá, pensara em negar o
crime, troca de decisão ao iniciar o seu depoimento e resolve assumir a culpa
pelo atropelamento.
No entanto, planeja
uma vingança a quem acha que foi o autor da delação do crime.
- Eu atropelei a
rainha de bateria. Mas, eu tenho um cúmplice. Trata-se do Seu Waldemar, dono da
oficina mecânica, que disse para eu deixar o carro lá escondido. O
atropelamento aconteceu...
Não fora Seu Waldemar
que contara sobre o crime para a polícia, que chegou a Tobias por outros meios.
O perito esquecera do que torna uma perícia exitosa: os detalhes.
Dia 08 de janeiro,
20h05min.
- Vou tentar ser
didático, relatando passo a passo, de como chegamos até o autor. Com a
repercussão do caso, começamos a verificar se na área do crime havia alguma
câmera de segurança. Encontramos uma câmera em uma residência, na rua paralela
ao local do atropelamento. No entanto, as imagens desta câmera eram muito
ruins, embora tenhamos conseguido verificar que o único veículo que circulara
pela redondeza na hora presumida do crime e cerca de duas horas depois, tenha
sido um veículo da marca Volkswagen, com placas de numeração IWJ94XX. Não
conseguimos distinguir os dois últimos números. Isso nos levou a acreditar que
o símbolo do para-choque encontrado no chão, no local do atropelamento, era do
veículo conduzido pelo autor do crime. Não sei se vocês sabem, mas estes
símbolos saem com números de série das montadoras, que se associam a um chassi.
Ou seja, cada veículo tem uma numeração própria. Assim sendo, pedimos à
montadora e quero agradecê-los pela rapidez em nos atender, que pelo número que
estava grafado no símbolo, nos falasse qual era a numeração do chassi. De posse
do número do chassi, chegamos à placa, que “batia” com a numeração que vimos
nas imagens das câmeras. Como trata-se de um veículo comprado zero há pouco
tempo e com um único dono no papel, não tivemos dificuldades em chegar ao nome
de Tobias Mendes!, narrou o chefe de polícia.
- Qual foi a motivação
do crime? O que o acusado contou em depoimento? Quem largou Selminha minutos
antes do atropelamento?, perguntou um repórter em sequência ao chefe de
polícia.
- Foi um crime
motivado por ciúmes! O acusado confessou no depoimento, respondeu.
Um “óóóó” ecoou na
sala e antes de ser questionado novamente, o policial seguiu fornecendo
detalhes.
- Tobias era
familiarizado com o bairro e passou pela rua de Selminha para inspecioná-la.
Eles tiveram um caso por três meses e foi ela quem encerrou com a relação, há
mais ou menos um mês, o que ele não aceitava. Quem largou Selminha metros antes
de casa foi uma amiga, que também prestou depoimento e contou que a deixou
metros antes da residência porque Selminha não queria acordar os familiares com
o barulho do carro na rua. Aliás, quero fazer uma retificação em minha fala
anterior. Dois carros apareceram nas imagens das câmeras de segurança: o de
Tobias e o da amiga, assim chegamos até ela, pois as imagens do veículo dela
estavam mais nítidas. Voltando à linha de raciocínio anterior... Selminha e a
amiga retornavam de uma festa, que a largou a poucos metros de casa e partiu
para a sua residência, foi quando Tobias viu a cena e, tomado pelo ciúme,
achando que Selminha estava com outro homem, se aproximou, conversaram um
pouco, então, ele jogou o carro por cima dela...
A vida e suas versões,
condutas éticas e justiça.
O judiciário aceitou o
pedido de prisão de Tobias e ele permanece preso. Seu Waldemar se enrolou ao
tentar se explicar no depoimento e responde por ocultação de crime em
liberdade...
A rainha de bateria
foi enterrada com honras no cemitério do bairro de Laranjeiras e homenageada no
carnaval pela escola de samba. Depois disso, fora os familiares, ninguém mais
lembrou do crime...
Na produtora de filmes
de curta-metragem
- Opa! E aí, meu
Diretor! Consegui chegar. Trânsito pesado. Tudo bem?
- Tudo bem! Chegou na
hora exata. Estava terminando de ler...
- Terminei ontem e já
te enviei O que achaste do roteiro? É possível fazer um curta-metragem com ele?
- Gostei! Ficou muito
verossímil...
- Que bom!
- Tem um conflito
ético... Nesta questão do atropelador e a profissão de perito...
- Esta era ideia...
- Tem o crime e a
solução deste crime de forma pitoresca... Tem a questão do cúmplice e a força
da pressão da imprensa sobre os órgãos públicos e esse jogo midiático...
- Sim! Sim!
- Tudo muito bom!
Mas...
- Eu sabia que tinha
um “mas”...
- Não gostei deste
final.
- Hum...
- Está... Está... Não
óbvio, mas previsível demais... Falta algumas coisas sabe... Alguma coisa que
surpreenda... Entende?
- Entendi...
- Quem sabe explora um
final que caia nas graças do público ou que gere um suspense ou que gere
justamente ao contrário, gere uma revolta em quem assistir ao filme. Algo que
mexa com o público! Eu quero ouvir o burburinho das pessoas comentando depois
que as luzes forem ligadas no cinema.
- Entendi. Vou
reescrevê-lo e lhe envio...
- Isso! Vá lá! Tu
podes mais, meu roteirista! Eu vou ficar aqui pensando e te aviso se tiver uma
ideia... Ah! Só uma última pergunta: esse teu roteiro é ficção ou podemos
realmente dizer que foi baseado em alguma história real?
Breve silêncio. O
Diretor insiste:
- E então, rapaz! Tem
algum fundo de realidade?
Nervoso, o roteirista
sorri amarelo para o diretor e deixa a produtora sem tecer uma resposta...
* Jornalista e
contista gaúcho.
No roteiro há uma brecha. O corpo foi encontrado na calçada de uma rua e o carro passou por cima dela na rua, pois Selminha caminhava lado a lado com o carro que a seguia devagar. O final surpreende, como queria o diretor do filme, pois o roteirista atropelou alguém.
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