Uma página de Rubem Braga
* Por
Evelyne Furtado
Ivo viu a uva. Ele viu
a viúva. Viu e escreveu sobre a viúva em maiô preto com seu filho na praia. Ele
também observou o homem nadando. Ele via e descrevia a vida como poucos.
Rubem Braga será,
segundo Millôr Fernandes, "um dos cinco melhores escritores brasileiros do
futuro". A frase está na sua página da revista Veja de janeiro último.
Braga morreu em 1990.
Em uma frase, com sua
marca brilhante, o mestre Millôr aponta, ao meu ver, a injustiça cometida
contra o escritor capixaba, simplesmente por ele ter escolhido a crônica como
forma de expressão literária.
Um preconceito bobo
como a maioria dos preconceitos é, pois Rubem Braga falava do cotidiano com
lirismo e extrema beleza em tom corriqueiro.
Foi grande exatamente
por não ser rebuscado, afinal, quem usa muitos adornos dá a impressão de querer
preencher com palavras a falta de conteúdo. Braga não precisava de tais
adereços.
Conheci Rubem Braga na
coleção Para Gostar de Ler, junto com Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e
Otto Lara Rezende. Um cuidado de pai para a filha que já gostava de ler, mas
que lia qualquer coisa que lhe caísse às mãos.
Assim, fui conhecendo
Cachoeiro de Itapemerim, o Rio de Janeiro de outra época (como já havia feito
com Machado), o mar, o menino e o passarinho.
Retorno a Braga,
através da observação de Millôr. Encontrei A Viajante, que ora transcrevo nesse
espaço, pois o texto entre tantos belos me escolheu. Uma página apenas onde se
vê o enorme escritor.
A Viajante
“Com franqueza, não me
animo a dizer que você não vá.
Eu, que sempre andei
no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo
assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique.
Em minhas andanças, eu
quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você
talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba
passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida — e às vezes reparamos que
é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos,
vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo
para ver você sumir na curva do rio — você que não chegou a entrar na minha
vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um instante, deu um movimento
mais alegre à corrente, mais brilho às espumas e mais doçura ao murmúrio das
águas. Foi um belo momento, que resultou triste, mas passou.
Apenas quero que dentro
de si mesma haja, na hora de partir, uma determinação austera e suave de não
esperar muito; de não pedir à viagem alegrias muito maiores que a de alguns
momentos. Como este, sempre maravilhoso, em que no bojo da noite, na poltrona
de um avião ou de um trem, ou no convés de um navio, a gente sente que não está
deixando apenas uma cidade, mas uma parte da vida, uma pequena multidão de
caras e problemas e inquietações que pareciam eternos e fatais e, de repente,
somem como a nuvem que fica para trás. Esse instante de libertação é a grande
recompensa do vagabundo; só mais tarde ele sente que uma pessoa é feita de
muitas almas, e que várias, dele, ficaram penando na cidade abandonada. E há
também instantes bons, em terra estrangeira, melhores que o das excitações e
descobertas, e as súbitas visões de belezas sonhadas. São aqueles momentos
mansos em que, de uma janela ou da mesa de um bar, ele vê, de repente, a cidade
estranha, no palor do crepúsculo, respirar suavemente como velha amiga, e
reconhece que aquele perfil de casas e chaminés já é um pouco, e docemente,
coisa sua.
Mas há também, e não
vale a pena esconder nem esquecer isso, aqueles momentos de solidão e de morno
desespero; aquela surda saudade que não é de terra nem de gente, e é de tudo, é
de um ar em que se fica mais distraído, é de um cheiro antigo de chuva na terra
da infância, é de qualquer coisa esquecida e humilde - torresmo, moleque
passando na bicicleta assobiando samba, goiabeira, conversa mole, peteca,
qualquer bobagem. Mas então as bobagens do estrangeiro não rimam com a gente,
as ruas são hostis e as casas se fecham com egoísmo, e a alegria dos outros que
passam rindo e falando alto em sua língua dói no exilado como bofetadas
injustas. Há o momento em que você defronta o telefone na mesa da cabeceira e
não tem com quem falar, e olha a imensa lista de nomes desconhecidos com um
tédio cruel.
Boa viagem, e passe
bem. Minha ternura vagabunda e inútil, que se distribui por tanto lado,
acompanha, pode estar certa, você”.
Rio, abril de 1952.
*
Poetisa e cronista de Natal/RN.
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