Um passo à frente, dois para trás
Caríssimos leitores, boa tarde.
“Progresso. O que devemos entender por
essa palavra? Se a definirmos como bons gramáticos, diremos que é um acréscimo
de bem ou de mal, na medida em que possamos discernir entre o bem e o mal; e
estaremos assim representando o próprio avanço da humanidade. Mas se, como se
faz nesta época em que o progresso é o movimento da humanidade que se
aperfeiçoa sem cessar, estaremos dizendo uma coisa que não corresponde à
realidade. Esse movimento não se observa na história, a qual só nos apresenta
uma sucessão de catástrofes e de avanços, seguidos de retrocessos”.
Belíssimas palavras, não é mesmo? Claro
que não são minhas, embora eu comungue dessa idéia. São de um gênio das letras.
São de um dos meus escritores favoritos, cujos livros não me canso de reler,
pelas verdades que encerram. São de Anatole France – pseudônimo de Jacques
Anatole François Thibault – autor que se não excede, se iguala aos seus
personagens, pelo talento, caráter e integridade.
Em vez de abordar o conceito de
“progresso”, peço-lhes licença para falar deste gênio das letras. Há muito
espero uma oportunidade para declarar minha admiração (e gratidão) por este
escritor, que tem me influenciado bastante nesta árdua empreitada de tentar
conquistar a mente e os corações de milhares, se possível milhões,de leitores.
Constato que Anatole France fez uma
espécie de transição entre a forma de fazer literatura no século XIX e a do
século XX. Foi, pois, uma espécie de “ponte literária”. Foi das tais pessoas
que fazem as coisas com paixão, tudo, textos, livros, amizades, inimizades,
ideologias etc. E, como não poderia deixar de ser, era apaixonado, sobretudo,
pela escrita. Assim como nós.
Anatole France, porém, foi também um
guerreiro, mas no sentido lato do termo. Tanto que, entre 1870 e 1871,
participou da defesa de Paris, no momento nevrálgico da Guerra
Franco-Prussiana, que redundou na inapelável derrota francesa. Integrou, na
ocasião, como guarda nacional, a 1ª Companhia do 20° Batalhão do Sena.
Embora comunista convicto (sobretudo,
nos seus últimos anos de vida, já que morreu em 1924 e pôde testemunhar,
portanto, a vitória da Revolução Bolchevique de 1917 na Rússia e a posterior
criação da União Soviética), fugiu da capital francesa no início da insurreição
conhecida como Comuna de Paris, que resultou na morte de milhares de
insurgentes. Afinal, era um sujeito corajoso, mas não temerário. E não
vislumbrava a mínima chance de êxito no referido levante popular.
Foi bibliotecário do Senado, mas anos
depois, chegou à Academia Francesa, eleito, aos 52 anos, para ocupar a cadeira
de número 38, anteriormente ocupada por Ferdinand de Lesseps, o projetista e
construtor do célebre Canal de Suez, no Egito.
Entre as inúmeras homenagens que
recebeu, foi galardoado com a Legião de Honra. Anos depois, todavia, devolveu
essa comenda, em solidariedade ao escritor Emile Zola, que a teve retirada, no
auge de uma azeda polêmica que envolveu toda a França nos albores do século XX.
Poucos tomariam essa atitude em apoio a um colega em situação tão vulnerável e
que vinha sendo injustiçado por ser tão corajoso. Mas Anatole France era assim:
inquieto, dinâmico, justo, íntegro e participativo. Nunca se omitia.
Como se sabe, Zola foi um dos primeiros
(e únicos) intelectuais franceses a tomarem as dores do capitão Alfred Dreyfus.
Esse militar foi injustamente acusado de espionagem em favor da Alemanha,
expulso do exército com desonra e condenado à prisão na terrível Ilha do Diabo
(seu nome já diz tudo), na Guiana Francesa.
Publicou, na ocasião, o célebre
manifesto intitulado “Jaccuse”, denunciando uma armação no caso em que o réu
foi condenado e perseguido apenas por ser judeu. Essa ousadia valeu a Zola
momentos muito amargos e duros. Tornou-se alvo da ira dos militares e da então
poderosa direita francesa.
Anatole France, mesmo sabendo dos
riscos de se envolver na questão, não se omitiu. Pelo contrário, foi dos
primeiros a aderir a essa nobre causa. Assinou, de imediato, a petição para a
revisão do processo de Dreyfus. Como se vê, embora muitos o classificassem na
ocasião (e alguns o classifiquem ainda hoje) de “encrenqueiro”, era homem de
honra, de larga visão, muito além do seu tempo.
Agora vocês entendem por que gosto, não
só da sua literatura, mas das suas atitudes? Pelas posições que assumiu, em
favor da justiça e da igualdade, nem é de se estranhar sua participação
decisiva na fundação da Liga dos Direitos Humanos.
Fosse apenas ativista político, Anatole
France já teria reunido méritos mais do que suficientes para se habilitar a
credor do nosso respeito e até da nossa reverência e admiração. Mas ele foi
além. Foi dos mais criativos e talentosos escritores da virada do século XIX e
do início do século XX. Qualquer um pode comprovar isso na leitura de livros
como “O crime de Silvestre Bonnard”, “O manequim de vime”, “Thaís”, “O lírio
vermelho”, “O poço de Santa Clara”, “A rebelião dos anjos” e tantos e tantos
outros.
Essa obra consistente, genial e densa
de conteúdo valeu a Anatole France o cobiçadíssimo Prêmio Nobel de Literatura
de 1921. Outros dos seus livros que recomendo com entusiasmo (alguns, hoje,
autênticas raridades bibliográficas) são: “História Contemporânea” (série de
quatro romances), “O caso Crainquebille”, “A ilha dos pingüins”, “Os deuses têm
sede”, “A casa de assados da Rainha Pédeuque”, “As opiniões de Jerônimo
Coignard”, “O pequeno Pierre”, “A vida em flor” etc.etc.etc. Como se vê, este
está habilitado a falar sobre o progresso e tudo o mais. E, nesse aspecto, a
humanidade faz a caminhada do bêbado: dá um passo à frente, dois para trás...
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
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