Qual é o seu tamanho?
* Por
Mara Narciso
Aos dez anos entrei no
mundo de Monteiro Lobato pela porta de frente. Usei a “Chave do tamanho” para
abri-la. Foi uma entrada fulgurante, que me obrigou a ler todos os seus livros
infantis. Não imagino uma única criança daquela idade que não se apaixonasse
pelo enredo do gênio criador de Emília, Narizinho, Pedrinho e o Sítio do
Picapau Amarelo. Foi publicado em 1942 e o Brasil entrava na Segunda Guerra
Mundial. Para acabar com ela, Emília desligou a chave do tamanho. Com os
humanos em miniatura, os artefatos assassinos não tinham serventia, o que levou
ao fim do malfadado genocídio. Racista? É preciso amputar parte da obra de
Lobato? Não sejam loucos. Cada época tem sua visão de mundo. Olhar o passado
com olhos de hoje, sem nenhuma condescendência, é ser cruel.
Aos três anos, subi no
telhado de minha casa escalando pela escada do pedreiro, e na descida não tive
pernas para alcançar o degrau de baixo. Imagem febril dos sentimentos de medo e
deslumbramento. Desci pelos braços fortes da empregada, com minha mãe vigiando
lá de baixo. O corredor da casa da minha avó Du, no centro da cidade, era
interminável, longuíssimo, de ladrilhos hidráulicos. Lá pelo final tinha uma
pequena pia com sabonete, geralmente cor-de-rosa e uma toalha grudada num
prego. Esticada e na ponta dos pés era possível molhar as pontinhas dos dedos.
Depois, quase de repente, me dei conta que a pia tinha abaixado, e dava na
minha cintura. O quintal cimentado também era quase uma floresta, com
abacateiro, goiabeira, ameixeira e umbuzeiro. Só dava umbu doce, único no
mundo. Subir em seus galhos era como pegar um foguete para a lua, tantas eram
as possibilidades da viagem. Um dia, o quarador que era quase do tamanho de um
campo de peteca, ficou inesperadamente menor. A casa tinha um respeitável pé-direito,
e continua alta.
A Praça de Esportes
exibia uma piscina semi-olímpica. Quando o professor de natação, Sabu, após
três meses de aulas, vendo meu receio de entrar na água sem a tábua e, enfim
nadar, coisa que as outras meninas já faziam, me pegou e jogou no meio da
piscina. Eu, aos sete anos, me senti subitamente poderosa, ainda que menos que
uma formiga dentro de uma xícara de leite açucarado, e nadei até a margem.
Ficar ciente de saber nadar foi como descobrir que sabia ler. Algumas vezes precisei
de estímulos fortes para avançar. Os anos correram; a piscina não encolheu, mas
minha coragem às vezes titubeia.
Nos anos pares, em
julho, tinha a Exposição Agropecuária de Montes Claros que, há anos passou a
ser anual. A lembrança daquela época me deixa leve como um balão cheio de gás
hélio, pronta pra subir ao céu. Pequena, perdida na multidão, sentia-me
importante, pois meu tio Zé, José Geraldo Mendonça, todos os anos montava um
stand da sua Serralheria Mendonça, e lá podíamos descansar. Piso de terra, sem
iluminação, a exposição com seu cheiro característico de cana moída de ração
para o gado, só funcionava até as 18 h. Em todos os momentos, era fácil me
perder na multidão, ainda que a cidade tivesse menos gente. Para as crianças, o
clímax da festa eram a esquadrilha da fumaça e o rodeio. Não sabíamos que os
animais eram torturados. Pensávamos que eram bichos selvagens e os peões
destemidos. Ver a festa acontecer dentro do grande círculo gramado era uma
impossibilidade da baixa estatura resolvida com uma dupla escada de ferro
providenciada pelo nosso tio Zé. Subíamos até o topo e ficávamos grandes,
podendo ver o outro lado do mundo, inclusive os paraquedistas milagrosamente
acertando o alvo. Numa certa hora, o narrador do rodeio dizia assim: “cutuca,
Caixeta, cutuca, Caixeta, ê nego duro!”, a cada edição. Nunca esquecerei.
Na infância, as coisas
eram gigantes, e escalávamos alturas, paredes dos prédios que morávamos, até
pelo lado de fora, ou os imensos escorregadores da Praça de Esportes. Sem esses
riscos, não sei se as lembranças dessas imensidões seriam tão intensas. Vivemos
emoções vivíssimas, escapamos e posso dizer que, dos 60 giros do mundo ao redor
do sol, até agora, todos valeram a pena, os da infância mais, apesar das restrições.
O mundo é grande, mas a imaginação pode ir além, especialmente se soubermos
fantasiar juntos. Na maturidade, menos invenção criativa, mas, enquanto houver
memória, queremos vida.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Que sejamos sempre do tamanho dos nossos mais acalentados sonhos. Abraços, Mara.
ResponderExcluirEstou precisando voltar a sonhar. Obrigada pela atenção, Marcelo!
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