Na senda dos milagres
* Por
Rubem Costa
Nunca fumei e não me
dou, habitualmente, à bebida alcoólica. Por isso, surpreendeu-me o inusitado
presente que a professora me enviou. Uma caneca gigante artisticamente
trabalhada. De louça. Colorida. Um canecão de cinco litros para chope. Trazia
em alto relevo a figura desgadelhada de um bêbado agarrado ao poste de luz, com
uma chave de porta na mão, a declamar pastosamente:
— Se é verdade que a
terra gira, minha casa deve passar por aqui.
No momento, confesso,
a alegoria anedótica chocou-me. Sob a impressão de estar sendo rotulado de
bebum, fiquei zangado. Dispunha-me mesmo a devolver a peça, quando de repente a
ficha caiu. Pareceu-me ouvir voz do ébrio a me recriminar acerbo: “não vê, estúpido,
que na sabedoria brejeira do povo fala Deus por linhas tortas. Não aprendeu
ainda o ensino bíblico? Não sabe ingênuo, que na anedota há sempre uma essência
de vida?” Atarantado, assim de repente, na fala irônica do cachaceiro brega
descobri o homem eterno, incapaz de por si só desvendar os mistérios da
existência. E ele ali estava. Inerte, amarrado ao poste da esperança,
aguardando o milagre, o giro do mundo que lhe havia de trazer, à chave da mão,
a porta de sua casa, a morada de seus sonhos que se misturam ao gosto amargo da
angústia de não ter e de não ser. É tudo que está no anseio do homem desde
priscas eras, a partir da criação do mundo. A transformação do caos na grandeza
do existir. Lede a Bíblia e vereis, na teologia do Êxodo, um povo estatelado no
deserto à espera, como única salvação, do maná que há de vir do céu. Milagre é
a proposta indefinível para essa busca infinda: resolução do impossível. A
incursão no mistério, confluência de forças ignotas não é uma faculdade de
todos. Penetrar nesse mundo inenarrável é privilégio dos anjos e começo da
santidade. Para ser santo é preciso caminhar pelo mistério e retirar da luz
divina a força para o milagre. É o preço preliminar da ascensão e
transcendência de Deus. Desejo que se imprime no coração dos crentes em busca
de sua eternidade. É a pedra angular das religiões que, entretanto, sabendo do
apreço do homem singular pelas coisas terráqueas, acham sempre um jeito de
propor ao crente um contrato intermediário entre o céu e a terra com a
incidência de atrativos práticos que facilitam uma aplicação supostamente
imediata. O que se deseja, é um aval para benesses futuras. Ao bêbado com a
chave na mão, não lhe seria prometido, com certeza, que a casa lhe viria de
imediato ao encontro — (há sempre, cautelarmente, um meio termo de prudência) —
mas, com um pouco de paciência, seria logo levado docemente a ela. Não podendo
andar, aceitaria com resignação a proposta. E concordaria, sem discutir, com a
sugestão de depositar um óbolo de gratidão na sacola do guardião do templo. No
tempo moderno, quem compreendeu isso com astúcia essa filigrana miraculosa foi
Edir Macedo e todas as seitas que o seguiram e estão por ai — com seus bispos
deputados e pastores na vereança — campeando dízimos ao quatro ventos. Quem atesta
melhor essa paisagem, como é fácil compreender, são os inocentes que, sob a
promessa do milagre, ajudam a construir — generosamente — em várias línguas,
vários templos de Salomão.. Claro que falo por hipérbole, já que parceiro do
templo de Deus só é aquele capaz de guardar pureza no coração. O conceito não
importa, porque expansão da prédica dos bispos é tão vertiginosa que agora,
ainda mais se amplia, quando do púlpito da igreja, dão um salto para a janela
da mídia, em que dominam como donos, comprando jornais e enriquecendo-se com
canais de TV. Mas, tudo em nome do Senhor, transcendência sobrenatural do amor
e do afeto.
Vergílio, um dos
maiores poetas da Roma antiga, na sua obra maior — A Eneida — lamentando a
sorte dos que trabalham para a riqueza dos reis, escreveu um verso que
representa a história eterna do homem sofrido e explorado: sic vos, non vobis,
edificatis aves — Assim vós, não para vós, edificais, ó aves.
Olhei de novo para o
canecão de chope. O bêbado aparvalhado ainda estava lá, agarrado ao poste da
esperança. À espera do milagre. Acreditando, profundamente crente, que, o mundo
girando, a casa virá um dia ao seu encontro.
*
Escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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