Impulsividade
salvadora
A pessoa impulsiva, a que age sem premeditação e nem plano
prévio, quase sempre dá com os burros n’água e fracassa em seus
empreendimentos, seja qual for sua natureza. Mas nem sempre isso acontece. Não
existe regra geral e inflexível, tida como dogma, que garanta, com absoluta
certeza, sucesso ao indivíduo certinho, desses que trazem as vidas
rigorosamente planejadas e que jamais, em circunstância alguma, dão saltos no
escuro.
Estas considerações vêm a propósito do personagem central do
romance “Trem noturno para Lisboa”, do suíço Pascal Mercier (pseudônimo do
filósofo Peter Bieri, nascido em Berna, professor de Filosofia da Universidade
de Berlim), um dos fenômenos editoriais da década. O referido protagonista
central do enredo é Raimundo Gregorius,
pessoa culta e sumamente metódica, dessas nunca dadas a aventuras ou
arroubos de ousadia, que leciona línguas clássicas, e que, subitamente, num
desses impulsos que todos às vezes temos na vida (mas que raros agem movidos
por eles), mergulha de cabeça em uma incrível jornada sem limites e descobre
uma série de verdades sobre o mundo e, principalmente, sobre si mesmo.
O livro, esclareça-se, não é novo. Foi lançado no Brasil em
2010 pela Editora Record. Na Alemanha, já vendeu um punhado de milhões de
exemplares e permaneceu por anos em todas as listas dos mais vendidos país
afora. Foi transpost5o para a tela, num filme de excelente bilheteria estrelado
por Jeremy Iron. Entre nós não teve idêntica trajetória. Mas é uma obra que
lhes recomendo sem pestanejar.
Gregorius, personagem emblemático (que, provavelmente tem
tudo a ver com Mercier), tem o apelido de “Mundus”, por sua erudição,
notadamente na matéria de sua especialidade: línguas clássicas. Tendo
fracassado no casamento, leva vida pacata de “solteirão”, (que é o que ocorre
com boa parte dos que se divorciam), dedicada quase que exclusivamente à
disciplina que leciona e aos seus alunos.
Um encontro casual, todavia, muda tudo isso. Numa
determinada manhã chuvosa, o vetusto mestre, folclórico entre professores e
alunos da instituição em que trabalha, impede que uma linda mulher se jogue da
ponte em Berna e ponha, dessa forma, fim à própria vida. Em rápido diálogo com
a potencial suicida, Gregorius encanta-se com a sonoridade da língua
(estrangeira) que ela fala para tentar justificar seu gesto que, na verdade,
ele não entende. Esse idioma é... o português.
Fascinado pela sonoridade das palavras dessa linguagem, para
ele insólita, vai a uma livraria e compra um livro, assim a esmo, de um autor
qualquer do país em que se adota esse mavioso linguajar. Trata-se do escritor
português Amadeu Inácio de Almeida Prado.
É praticamente aí que começa a verdadeira história, o enredo
central desse tão bem urdido romance. De posse de um dicionário, Gregorius
traduz trechos do referido livro e, à medida que vai lendo (e entendendo) as
reflexões do autor, mais envolvido e curioso fica. É aí que entra o tal
impulso. Fica obcecado para saber quem era o autor das judiciosas palavras que
lia, qual a sua realidade pessoal, onde vivia, o que fazia além de escrever
etc.. Enfim, quais eram as circunstâncias da sua vida.
No dia seguinte ao do encontro com a portuguesa, bem no meio
de uma aula, interrompe uma explanação que faz e, para espanto de toda a
classe, deixa subitamente a sala e a faculdade. Vai até a estação ferroviária
de Berna, e sem planos prévios e sem avisar ninguém, parte no primeiro trem com
destino a Lisboa.
Bem, ficarei por aqui em minhas dicas sobre o enredo para
não estragar o prazer da surpresa na leitura desse intrigante romance. Leiam-no
e tenho a certeza de que irão gostar, da primeira à derradeira página. Trata-se
de fascinante aventura intelectual e estética, como é a do próprio Mundus,
personagem central da obra.
Quanto a Mercier... Também agiu por impulso ao elaborar esse
texto. Sem planejar e nem avisar ninguém, decidiu, de repente, escrever “Trem
noturno para Lisboa”. Tornou-se, para sua surpresa, best-seller, e não pára
mais de vender, o que transformou, óbvio, toda a sua vida. Entre outras coisas,
largou o magistério, que lhe rendia migalhas perto do que a literatura lhe
rende agora. Em vez de passar seus dias às voltas com alunos, não raro
entediados, sonolentos e desinteressados de suas preleções, passa-os, agora, à
frente da telinha do computador, a escrever novos romances. Tudo leva a crer
que, de certa forma, Mundus é o próprio perfil de Mercier.
Quanto ao pseudônimo que adotou, o ora bem-sucedido
romancista explica: “Enquanto professor, receei colocar a minha reputação
acadêmica em causa quando comecei a escrever ficção. Precisava me esconder
atrás de pseudônimo para ter coragem de me libertar na escrita. Só sabia que
queria um nome com sonoridade francesa, mas que não fosse extravagante. É uma
experiência fantástica escolher um outro nome, porque o kitsch que há em nós
surge no seu máximo.Os primeiros nomes que nos surgem são extraordinários”.
Se você, leitor amigo, tem secretas e inconfessáveis
ambições de se tornar escritor, mas não tem coragem de abandonar sua “santa
rotina”, seu empreguinho chato – mas que lhe rende o suficiente para custear
seus caprichos – e nem o cronograma “certinho” que elaborou, decida-se. Vá à
luta!
Da próxima vez que lhe bater o impulso de jogar tudo para o
alto, faça-o. Claro que você jamais terá certeza do acerto da decisão. Nunca
temos. Siga, porém, seus instintos e, sobretudo, sua intuição. Faça o que o
coração lhe ditar. Mas arque sozinho com as conseqüências. Aí é que está a
graça desse tipo de aventura. Se forem boas, a glória será sua. Se forem
ruins... azar o seu. Quem sabe, todavia, se daqui a algum tempo, não estarei
comentando, neste espaço, seu sensacional best-seller? Quem sabe? Afinal, quem
não arrisca...
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Instigante com sua sugestão de intrigante livro. Quem sabe a gente não lê esse romance? Claro, com o significado de ler.
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