Ideias consoladoras
* Por
Antonio Austregésilo
Quase todos sofrem na
existência; raros conscientes não têm padecido os acúleos das dores morais; e
já há milênios que a metáfora religiosa afirma ser o mundo “vale de lágrimas”.
Há, como todos sabem,
sentimentos depressivos, magoantes de origem real, e outros de fonte puramente
nervosa. Em ambas as hipóteses, a consciência sofre porque se apercebe das
dores verdadeiras, ou imaginárias. A dor é um estímulo e um inimigo: conduz à
reação, mas aniquila, às vezes, a personalidade moral. Sofremos mais pelos
sentimentos do que pela razão propriamente dita. A sensibilidade de cada um
aumenta ou diminui, minora ou agrava os padecimentos afetivos. Diante, porém,
das amarguras da vida é sempre possível evocar ideias consoladoras para os
padecimentos físicos e morais.
Refere-nos Liebault
que o filosofo Kant, quando tomado de fortes crises de palpitações e dispneia,
evocava ideias agradáveis e felizes e os sofrimentos se dissipavam
progressivamente, e que o famigerado pensador Bacônio, quando ia arrancar um
dente, conduzia os pensamentos para as coisas alegres e quase não sentia ou
percebia dor. Muitos exemplos são repetidos por colendos observadores. Na
própria dor física há um elemento psíquico indiscutível, constituído pelo medo,
ou pavor. Quando nos aproximamos da cadeira do dentista ou quando somos
ameaçados do bisturi do cirurgião, ou da agulha de uma simples injeção
subcutânea, julgamos que as dores são maiores do que sucede na realidade. Quanta
vez, após pequena operação não sentimos aquilo que tanto temíamos!
As ideias alegres e
consoladoras devem surgir no limiar da consciência quando há sofrimentos
físicos ou morais. Os conselhos de Feuchterlebens e de São Francisco de Sales
são a este respeito dignos de leitura atenta, pelos timoratos e desanimados da
vida. Sofrer é em regra o pábulo de todos os corações. Não creio que haja
alguém mais do que outrem. Os males morais computam-se habitualmente por igual
quinhão por todos.
Naturalmente, quanto
maior a nau, maior a tormenta. O otimista razoável não reconhece a ausência da
dor na existência; ao contrário, assinala-a, mas esforça-se por vencê-la. Neste
particular, o otimismo, o estoicismo e a religião cristã muito se parecem. A
dor física e a moral são contingências da vida, e quanto mais esta se
aperfeiçoa, mais o organismo se torna a elas sensível. O nosso dever está em
sempre afastá-las, e não cultivá-las.
Cada vez que surgir
dentro da alma sofrimentos sinceros e profundos devemos evocar as ideias
consoladoras, substitutivas das mágoas insolúveis. A saudade pode exalar
cheiros venenosos, ou perfumes doces. Depende do cultivo moral da planta;
depende, pois, do agricultor. Não poderemos dizer à mãe amantíssima, à esposa
inconsolável, ao pai extremoso que arranquem subitamente do peito as setas que
lhes malferem o coração, pela morte ou desgraça dos entes estremecidos. Porém,
podemos ensinar-lhes as evocações das ideias consoladoras, de paz, de caridade,
de justiça, de razoabilidade, e a grande resignação, que constitui a nobreza da
alma.
Nietzsche, no fulgor
impiedoso da cultura da energia, aconselha o estrangulamento da dor moral,
porque a resignação, a piedade humana e outros sentimentos religiosos são
covardias da alma. Se o homem realmente pudesse ser o ente vigoroso de ânimo e
nobre de espírito, indiferente aos males da vida e aos desgarrões da fortuna,
segundo o conceito de Sêneca, de Kant e até certo ponto de Nietzsche, então a
humanidade teria atingido à saúde moral absoluta. São, porém, raros os que se
comportam assim diante das dores e dos desfortúnios. Esforcemo-nos sempre para
minorar os desgostos e padecimentos da alma; e procuremos embotar o amor
próprio, diminuir a impetuosidade das paixões, e respirar o ar puro onde
florejam a resignação e as ideias consoladoras. A lágrima e o sorriso vivem a
captar a simpatia da humanidade. Não sei por que o homem diz gostar mais do
sorriso, apesar de viver mais tempo ao lado da lágrima.
Toda vez, porém, que
penetrar dentro da morada dos nossos sentimentos o hóspede incômodo que é a
dor, se não houvermos forças para enxotá-lo, que o substituamos, aos poucos,
pelas ideias consoladoras, pelas ideias do bem alheio, que é a mais nobre de
todas as ideias.
Preceitos e conceitos,
1921.
*
Professor e ensaísta, membro da Academia Brasileira de Letras.
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