Fantasias de Dona Nenê
* Por
Pardal Mallet
Nenê andava também
grandemente sobressaltada, nuns incompreensíveis de existência que ela mesma
não sabia explicar. Tinham-lhe aparecido agora uns recrudescimentos de efusões
maternais. Em repentes, pegava do Pedroca e beijava-o repetidas vezes, com umas
grandes veemências que assustavam os circunstantes. Para com o marido tinha da
mesma sorte uns transbordamentos de ternura, abraçando-o e beijando-o à vista
de todos. Apesar do modo respeitador e quase cerimonioso pelo qual vivia com D.
Augusta, esta não escapava às bruscas e repentinas manifestações de amizade que
a moça atualmente derramava em mãos cheias ao derredor de si e das quais nem
mesmo se livrava Sá Jovina. Parecia enfim que Nenê sentia em si uma exuberância
de afeições que ela irrefletidamente ia prodigalizando a torto e a direito,
talvez por não poder gastá-la como sonhava, nuns esquisitos de caprichos de que
se admirava mais tarde, fazendo-se faceira, trabalhando nuns requintes de
toilettes, vivendo num estranho de ilusões e de fantasias onde não se
reconhecia, em cujo terreno julgava não ter passado até aquele momento.
Dominava-a agora uma
grande paixão pela música. Sonhava umas harmonias deliciosas de instrumentos
bizarros e nunca vistos, tangidos por mãos celestiais, a saturar o ambiente de
sonoridades excitantes, a banhar-lhe o corpo inteiro numas vagas de
sensualidades. Era nuns automatismos de alucinada que ela caminhava para o
piano, fazendo-lhe vibrar o teclado numas notas merencórias de tristezas sem
fim por entre as quais, de momento a momento, destacavam-se nuns rápidos veios
auríferos os ritmos alegres de Offenbach. Ela andava assim, a estereotipar na
variabilidade das músicas o vasto movediço que lhe ia pela alma adentro; todas
essas modalizações bruscas e antinômicas do seu espírito a vogar, a vogar
indeterminadamente, aos azares da correnteza, pelo oceano marulhoso dos
pensamentos. E quando, nuns rápidos momentos passageiros, sentia-se senhora de
si e procurava sondar essas paragens ignotas, em que navegava agora, achava-se
em presença de um abismo sem fundo cujas sensações más procurava abafar num
mundo de harmonias.
Por vezes, mesmo
durante o dia, ela exigia que o Marcondes fosse ensaiar em sua companhia alguma
nova peça. Os dois dirigiam-se para a sala de visitas cujas janelas
escancaradas deixam entrar francamente sol alegre e vivificante a alumiar umas
paisagens verdes e encantadoras, todas formadas com as árvores do jardim. Então
olhavam-se, nuns olhares longos, expressivos, que procuravam conter um mundo de
pensamentos dissolvidos na tibiez própria de cada um. Olhavam-se e sorriam-se,
atrapalhados, lamentando esse momento do frente a frente, que haviam desejado
pouco antes, silenciosos, sem terem a coragem de pronunciar uma palavra, com
medo de ouvir o som da própria voz, procurando esconder o acanhamento das suas
posições. E para aparentarem uns ares de desembaraço atiravam-se logo ao piano
e flauta, tentando sufocar o que lhes ia pelo organismo inteiro, a febre que os
devorava, num oceano sem fundos de harmonias, custando muito em acertar o
compasso, tocando quase sempre ao acaso das recordações, vendo pouco e
distraidamente a música que tinham diante dos olhos, com vontades de pôr um
termo àqueles sofrimentos, de dizerem-se mutuamente os turbilhões de desejos
que os abrasavam.
Pela porta que haviam
deixado aberta, de envolta com o sopro de vida mansa e sossegada que vinha lá
de dentro, Nenê sentia a beijarem-lhe as espáduas e a nuca, em satânicos de
cantáridas, umas arreitações gostosas que a prostravam. Parecia-lhe ouvir, em
tons murmurantes, umas excitações tresloucadas a lhe falarem de amor. Era a voz
de d. Augusta, nas intimidades dos a sós, tecendo elogios ao Marcondes,
achando-o um rapaz sério e refletido, que tinha diante de si largos horizontes
e um futuro sorridente de prosperidade. Era Sá Jovina entoando em homenagem ao
moço uns louvores sem fim, descobrindo-lhes qualidades raras, fazendo-o o
protótipo das virilidades. Era o Pedro, que à noite, no aconchego dos lençóis,
lhe contava anedotas da vida colegial, uns rasgos de coragem de amigo, umas
situações difíceis em que todos se haviam retirado sãos e salvos graças à sua
valentia e presença de espírito. Eram enfim as risadas infantis do Pedroca, que
gostava muito do seu - amigo grande - e lhe vinha mostrar as balas que ele lhe
trouxera.
E a moça curvava a
cabeça num gesto gentil de vítima pagã que espera sorrindo o golpe do
sacrificador. Entregava-se. Não tentava mais lutar. Parecia-lhe que a casa
inteira - a mãe e o filho - o marido e a velha amiga, até mesmo os objetos,
tudo quanto a circundava, conspirava para lançá-la nos braços daquele homem. E
ela ficava ali, quieta e sossegada, num grande aniquilamento de si mesma, à
espera que ele se abaixasse para tomá-la. Vinham-lhe umas submissões de
escrava, vontades de que ele fosse brutal, desejos de cair nuns laivos de
honestidades, aos últimos paroxismos de uma luta. E como ele se conservasse
quieto, a olhá-la longamente numas ternuras medrosas, a moça levantava a cabeça
e fitava-o com um sorriso triste de quem pede que acabem de uma vez com esses
tormentos, de quem quer libertar-se quanto antes de perspectivas negras e
ameaçadoras. Então os dois recomeçavam novamente a música, entoando as
sinfonias tristonhas de uma qualquer balada alemã, procurando afogar o
turbilhão de pensamentos, que lhes ia pelo cérebro dentro, no lago tranqüilo e
calmo de umas melodias merencórias e taciturnas como a natureza gelada de sua
pátria.
(Hóspede,
capítulo XXII)
*
Jornalista e romancista, membro da
Academia Brasileira de Letras.
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