Âncora
* Por
Gustavo do Carmo
Até despontar Fernando
Inácio, Francisca Patrese era a melhor apresentadora do Jornal das Oito da
TVNEWS. Era segura, tinha credibilidade, além de isenta e transparente.
Começou a trabalhar como
repórter de rua. Em seis meses assumiu interinamente a bancada do Telejornal
Local da Manhã. Com a mesma rapidez virou âncora titular da tal edição e a da
Tarde. No ano seguinte, tornou-se uma das apresentadoras do Jornal das Oito.
Dividia a bancada com o veterano jornalista Júlio Orestes.
Roubou a atenção do público
com o seu talento. E o espaço do companheiro de bancada. Francisca Patrese
assumiu a apresentação solitária do jornal, além do cargo de editora-chefe.
Com a chegada de Francisca
à bancada, a audiência do Jornal das Oito duplicou. Triplicou quando ela
assumiu o comando total. E caía quando ela era substituída nos finais de
semana, feriados, faltas e férias. Isso começou a preocupar a emissora, que
diminuiu a sua folga semanal, mas compensou sua nova estrela com um aumento de
salário.
Foram testados dez
substitutos. Entre estes, cinco foram contratados só para cobrir Francisca. O
primeiro foi o seu antecessor e antigo companheiro de bancada, Júlio Orestes.
Não tinha mais a mesma credibilidade do passado. Principalmente depois que foi
descoberto recebendo propina de um deputado cassado por corrupção. Só durou uma
semana. Desligou-se da emissora logo depois.
Vieram outros interinos.
Homens e mulheres. Reeditaram a dupla de âncoras. Um casal. Dois homens. Duas
mulheres. Tentaram de tudo. Nada adiantou. A volta de Francisca neste meio
tempo era um alívio para a diretoria da emissora. A audiência voltava a subir.
E o estrelismo de Francisca
subia também. Com o seu carisma conquistou o carinho dos fãs. Mas o sentimento
não era muito recíproco. Ela raramente respondia aos e-mails dos
telespectadores. Mandava a produção fazer isso. Na redação era antipática.
Gritava com os câmeras, produtores e estagiários. Esnobava os colegas, que
tinham ciúme do tratamento dado pela diretoria a ela. Os homens apostavam que
ela subiu na emissora por causa do teste do sofá. As mulheres destilavam
inveja. Seus únicos amigos eram, exatamente, os diretores do jornalismo e o
dono da emissora.
Mesmo assim, Francisca
continuava como o trunfo do canal. Até chegar o jovem repórter Fernando Inácio.
Depois de dois anos atuando como repórter de praça, ganhou a chance de
substituir a famosa âncora por uma semana quando ela precisou faltar para
cuidar da mãe doente.
Francisca não teria com o
que se preocupar. Afinal, ela era a estrela da emissora e sua presença
representava mais audiência e mais patrocinadores. O que a TVNEWS não imaginava
era que Fernando mantivesse a audiência do Jornal das Oito. No dia seguinte, o
índice duplicou. Só voltou ao normal quando Francisca reassumiu a apresentação.
Exatamente por ter
registrado um novo recorde de audiência para o jornal, Fernando foi efetivado
como co-apresentador. Ao lado de Francisca na bancada. A estrela da emissora
logicamente não gostou. Ficou nervosa no primeiro dia com o novo parceiro.
Gaguejou, atravessou a locução do colega, chamou a matéria errada, suou frio.
Nunca havia passado por essa experiência. Nem nos seus tempos de estagiária.
Abandonou a bancada antes do fim do telejornal. A câmera estava fechada em
Fernando. Mas foi possível ver o ruído de irritação e a famosa âncora fugindo
transtornada. Virou hit na internet.
Francisca Patrese ganhou
uma suspensão de uma semana (ou gancho, no jargão jornalístico). Desta vez, sua
ausência não fez falta para os telespectadores. Fernando Inácio tornou-se o
titular do Jornal das Oito. Quando voltou do castigo, ao saber que tinha
perdido os postos de âncora principal e editora-chefe, além de ser obrigada a
voltar para a reportagem externa, Francisca jurou vingança.
A primeira providência foi
borrifar um forte perfume barato no cenário antes do jornal começar. Ela sabia
que Fernando era alérgico e queria provocar um constrangimento ao vivo do
rival.
Quase conseguiu. O novo
âncora chegou a dar um espirro e alguns tossidos no ar. Estrategicamente o
jornal foi interrompido com aquele tradicional selo informativo de problemas
técnicos e entrou um intervalo comercial de três minutos enquanto Fernando
tomava o seu remédio e a produção borrifava os seus olhos vermelhos com água e
ajeitava a maquiagem. Voltou a apresentar normalmente, superando com a sua
elegância habitual a adversidade de saúde pela qual acabara de passar. Só não
conseguiu disfarçar a vermelhidão dos olhos.
Em sua casa, Francisca dava
gargalhadas quando via Fernando tossir e espirrar na abertura do telejornal.
Chamou a atenção do marido e dos filhos. Acreditava que ninguém descobriria.
Ledo engano. No dia seguinte foi demitida por justa causa e pessoalmente pelo
dono da emissora. O desespero e a sede de vingança por ter perdido a vaga de
estrela do noticiário a fez esquecer que a redação era monitorada por câmeras
de segurança. Um recurso tão óbvio que até as crianças sabem disso.
E-mails ameaçadores vindos
do endereço eletrônico de Francisca começaram a entrar na caixa de mensagens de
Fernando. Ele ignorou. Depois apareceram os torpedos. E também os telefonemas
com voz feminina. O jovem jornalista não deu queixa. Até sua esposa grávida
receber uma encomenda com duas aranhas venenosas.
Pelo remetente, a polícia
prendeu Francisca Patrese, a ex-apresentadora do Jornal das Oito da TVNEWS. Ela
foi indiciada por ameaça e tentativa de homicídio. Acusação da qual saiu
absolvida.
Durante o processo, a
polícia investigou e identificou que o verdadeiro autor das ameaças por
telefone, e-mail, mensagens de celular, e os aracnídeos peçonhentos era o
veterano âncora Júlio Orestes. Mesmo desligado da emissora tinha informantes lá
dentro. Um deles ouviu o juramento de vingança feito por Francisca, de cabeça
quente, quando do seu afastamento do telejornal. Orestes contratou um hacker
para invadir o computador de Francisca e enviar os e-mails. O celular foi
clonado. E as aranhas saíram de um instituto de pesquisas biológicas depois de
um funcionário receber uma propina. Tudo que o aposentado jornalista queria era
se vingar de Francisca por ter lhe tirado o seu posto de âncora que ocupava há
trinta anos.
Júlio Orestes foi preso e
condenado por corrupção ativa, ameaça e tentativa de homicídio. Francisca
ganhou uma indenização com a qual abriu uma produtora e criou um programa
feminino num horário local comprado para ser exibido no meio da madrugada de
quarta-feira. Já Fernando perdoou Francisca pelo desodorante no estúdio, única
culpa que a colega teve, e tornou-se o seu único e verdadeiro amigo. A primeira
ajuda que ele pediu foi como recuperar o seu posto de âncora, perdido para uma
bela e jovem repórter que o substituiu definitivamente por causa dos índices de
audiência.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance
“Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea
“Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess - http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/
e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu blog, “Tudo cultural” -
www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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