Estética das batalhas
* Por
Gregório da Fonseca
A arte é uma profissão
de eleitos: só depois de uma seleção natural, em que os fracos e os medíocres
se anulam, prevalecem no tempo, em reduzido número, os predestinados, únicos
que atingem à honra suprema de artistas.
Ser artista; produzir
uma obra-prima; criar com o belo existente o belo que não existe; fixar para
sempre um aspecto novo de beleza que se não repetirá; avançar do seu tempo, do
seu século, abrindo largas estradas ao pensamento futuro; para os Gregos era
divino, é heroico na expressão de Carlyle.
Pelo infinito
desconhecido que idealiza, a arte pode ser também uma religião. Atenas sonhou
agrupar em torno à sua beleza simples e serena o planeta escravizado; venceu-a
- fatalidades do progresso humano - o frio e austero direito de Roma. A
Renascença retomou-lhe o sonho: gregos ressurrectos, iludindo a vigilância
católica, organizavam a vitória, servindo-se da Igreja como instrumento e
fazendo dos papas adeptos da fé comum, empreiteiros universais do trabalho
intelectual e monopolizadores em grosso da produção artística do mundo.
A nota trágica, dava-a
a fogueira, queimando os rebeldes à nova crença. Aviventou-lhe as chamas o
inestético Savonarola...
Tempo febril! Brabante
imaginava Partenons grandiosos para um Cristo Olímpico. Miguel Ângelo descobria
no apocalíptico Juízo Final simples motivos estéticos de nu, e o seu Moisés
podia ser o Posêidon do templo de Pœstum. Cellini feria, matava, com a mesma
coragem genial e arrojada que distendia o braço de Perseu vencedor. Flagelo de
príncipes, Aretino gozava magnífico o alto preço dos seus editoriais. A agonia
de Júlio II foi loucura de Pigmalião, por esvair-se-lhe o sonho de arte.
Desenterravam-se as diabas brancas com o religioso carinho secreto dos apóstolos
no cenáculo, certificando-se da Ressurreição. O Vaticano era uma vasta
hospedaria de modelos, um entreposto de beleza animada. Felizes das que então
nasciam com um pescoço alongado em linhas perfeitas ou um colo em curvatura
serena, dignos do pincel de Sanzio!
À inteligência e aos
sentidos ressurgia vitorioso o culto antigo, a que, para ser uma religião,
faltava apenas a moral correspondente.
Poderia tê-la
construído Maquiavel; porém o antecessor de Nietzsche na criação de um
super-homem carecia de abnegação dogmática. Contentou-se por isso com um
humorismo triste de bondade vencida, a aconselhar aos príncipes o punhal e o
veneno.
O verbo encarnado da
época foi Leonardo da Vinci. Em cadernos esfíngicos, que avaramente escondia,
esboçou todo um evangelho de amor, e, pois, de moral pela beleza. Sua gêneses
humana contraria a Bíblia, negando que o homem tenha sido feito à imagem e
semelhança de Deus: o imortal somente percebe a mão divina no esplendor da
carne; porque a matéria, dizia, guarda a sua forma com mais desvelo e orgulho,
que a alma a sua nobreza.
Pregava uma moral
analógica, filha da realidade: - Não matarás, que atentado! - palavras de
Leonardo. - Tirar a vida ao homem, cuja forma se revela em ti, como uma
maravilha de arte! Pensa no respeito que deves ao espírito que habita esta
arquitetura divina. Tu o deixarás, pois, gozar a seu prazer o palácio suntuoso
do corpo, construído por esforço próprio, e, nem por cólera, nem por maldade,
aniquilarás uma tão bela vida. Resigna-te à dor, exclamava o mago, a natureza
converteu a dor em apanágio dos animais, dotados de movimento, com o fim único
de melhor lhes conservar os belos órgãos.
Para Leonardo, o Deus
terrestre é o homem, e o homem é o gênio criador de formas, inventor de leis,
único merecedor de estátuas e de simulacros.
[...]
Estética das batalhas,
ou, restringindo, pois, o título seria um pouco obscuro na sua vastidão, a
batalha através das belas artes e, principalmente, através das artes plásticas.
A luta, o velho tema
de beleza plástica e épica, será eternamente oceano de inspiração a escultores,
pintores e poetas de gênio.
A primeira
manifestação estética do homem foi necessariamente um episódio de luta, reflexo
da vida diária: luta pela existência contra os elementos, enfurnando-se; luta
contra a fome, caçando, dominando os animais mais fracos; e, quando a luta o
assoberbou, quando os poderosos contrários, as feras fortes, a natureza brava,
se aliançaram para vencê-lo, - criou Deus. Deus é um episódio da luta -
divinização do invencível, do vitorioso. O homem primitivo, insculpindo o
primeiro fetiche e adorando-o, contava egoisticamente com ele para a vitória.
A batalha, embate
coletivo, prevalece como soberano modelo das artes: luta ampliada, vasta,
multiforme, caleidoscópio desmedido e variado da pose e da linha, onde
assistimos ao entrechoque de todas as paixões e de todas as virtudes que
ascendem à glória.
Os estetas da
Antiguidade, no limite dos conhecimentos arqueológicos, assim o compreenderam;
e do antigo Oriente, em que primeiro a pedra e os metais tomaram forma, dando
aspectos novos à terra, chegam-nos ainda bocados maravilhosos de história
épica.
Os assírios
divinizaram a força: Ishtar, predileta, era deusa do amor e da guerra. Ao
modelarem deuses e fetiches, os artistas assírios distanciam-se da perfeição,
povoando céus e terra de divindades macabras. Nos baixos-relevos
representativos de cenas de combate e apoteoses de reinados vitoriosos, foram
de uma verdade que assombra.
Os persas, imitadores
dos assírios, legaram-nos talhadas na rocha a pique, a alturas inverossímeis,
toda uma tática de combate antigo: carros de guerra, elefantes, leões,
arqueiros, cavaleiros em carga arrojada, infantes vitoriosos, a cabeça do
vencido segura às mãos crispadas do vencedor.
O monumento capital da
arte persa, a cerâmica que o Louvre possui, representando os imortais da guarda
de Dario, de túnica branca, semeada de flores, botas amarelas, carcás escuro,
alto pique de ponta de prata, ainda hoje extasiam no brilho do colorido, enaltecendo
o renome da arte oriental, pela delicadeza do desenho e sobriedade dos motivos.
A arte que floresceu
às margens do Nilo, alma mater das artes, pela Antiguidade, antes da influência
grega, cogitou da duração. A estética egípcia almejava a vitória sobre o tempo,
construir para a eternidade; mesmo assim, no interior desses túmulos, habitados
por múmias incorruptíveis, veem-se repetidas com orgulho as epopeias marciais
das dinastias conquistadoras.
Na Grécia...
Falando de arte, ao
chegar à Grécia, sente-se o espanto deslumbrador do primeiro homem, vendo pela
primeira vez.
Os gregos, na fórmula
feliz de Renan, foram “os verdadeiros inventores da beleza”. O gérmen primitivo
e fecundante, que deu ao gênio grego o poder de criar a beleza, foi a batalha.
O glorioso destino estético da Grécia é produto da vitória.
Esta afirmação
demonstra-se logicamente, sem ser por paradoxo, - expressão precisa de uma
verdade indemonstrável.
Na origem, a Grécia é
a Ilíada, uma vitória.
Durante mais de três
séculos, a poesia perfeita da epopeia heroica, repetida pelos rapsodos ao som
da lira sonorizada por Terpandro, sustenta com a sua beleza as aspirações
comuns da raça helênica. O poema do aedo divino, que Montaigne se admira não
tenha altares e não seja um Deus, foi o elemento principal da cultura grega, a
religião, a moral e a semente genetriz informe da forma.
O monumental na Ilíada
é o combate, a batalha: todo o mármore do Pentélico não bastaria para
concretizar, esculturando-as, as cenas de luta que ela contém.
Ao calor dessa
inspiração, a escultura helênica de antes de Péricles aproxima-se a passos
agigantados do ideal, superior a tudo quando o Oriente até então produzira, por
ser a vida, o movimento. Os artistas audaciosos, pelo orgulho da obra acabada,
escalam o Olimpo e insculpem pela primeira vez, na frisa dos templos, os deuses
batalhando entre os mortais; e pela primeira vez, no modelar guerreiro
moribundo do frontão do templo de Afaia, o vencido mantém-se belo e doloroso,
no mármore dos vencedores.
Nascia também o
elemento estético por excelência do combate: Policleto criava perfeito um ideal
humano de força feminina, o tipo da Amazona guerreira, que será eternamente o
mais belo e escultural soldado de todas as batalhas.
Cortando essa vertigem
para a perfeição, desabalava do Oriente entenebrecido a barbaria persa,
transformando a Hélade sagrada num montão de ruínas. O gênio grego foi
admirável na sua ascensão após o triunfo: quinze anos depois da expulsão do
último soldado de Mardônio, era o século de Péricles.
O velho Heráclito,
precursor de Nietzsche, na sua linguagem genial e cabalística, afirmara uma
verdade, dizendo ser a guerra o pai e rei de todas as coisas e de todos os
seres.
Em seguida a Plateia e
Salamina - o Partenon.
A batalha é, portanto,
logicamente, a mãe de todas as artes: a arte grega, primogênita sem irmãs, deve
o seu surto magnífico ao entusiasmo provocado pelas vitórias libertadoras.
[...]
Redentora das
batalhas, sob a pressão tremenda da consciência humana, explode a Revolução
Francesa.
A Europa inteira
coliga-se contra a França revolucionária. Na tarde de Valmy, véspera de
Jemmappes, numa barraca de vencidos, o maior gênio do tempo, cidadão da
Humanidade, como orgulhosamente se chamou, Gœthe, grave, solene, pronunciou
estas palavras: “Neste lugar, neste dia, começa uma nova época para a história
do mundo”. O gênio é profético, infalível; principia com efeito a derrocada de
tronos, de impérios, e no cenário da Europa atônita, aparece, como um semideus
retardatário, vindo fazer legenda, Napoleão, o Fídias incomparável das
batalhas.
As artes
representativas do velho tema de luta ressurgem com fulgor, e a batalha, como
expressão de beleza, volta ao apogeu.
Napoleão, artista de
gênio, escultura ao natural, sobre o solo laborado do velho mundo, modelos
supremos de beleza tática: Austerlitz, Yena - exemplos inigualáveis de vontade
indomável: Arcole, Marengo; e dá a demonstração infalível de que o gênio é
quase um Deus onímodo, incansável: 1814.
E os artistas
franceses pintam os mais belos e perfeitos quadros de batalha conhecidos, e, no
domínio da arte, refulge a estética napoleônica.
Napoleão tinha
consciência plena da linha de beleza na luta; os exemplos pululam na sua vida
de último rei-herói, de Carlyle.
Um episódio, entre
muitos: no Egito, a batalha do Tabor, Kleber, ao centro de um quadrado heroico,
resistindo impassível ao embate furioso de um número décuplo de mamelucos em
carga. Guiado pelo troar da artilharia, Napoleão marcha em socorro. Ao
descortinar a beleza da cena, detém-se - artista -, e o estado-maior que o
cerca, em vez de ordens precisas de avançada, ouve exclamações à beleza
imponente da tela, onde ressalta agigantado o vulto equestre de Kleber.
Imaginai o que pensou
Bonaparte! Beleza é evocação: dominava-o no momento o prestígio lendário do
deserto, a Ásia, Alexandre, um punhado de franceses invencíveis às faldas do
Tabor, montanha sagrada, campo de batalha de Saul, imortalizado em livros bíblicos!
Napoleão tinha
convicção da sua agigantada estatura épica; Desaix dera-lhe um trono em
Marengo. Um túmulo para o herói! Napoleão escolheu: - Para Desaix os Alpes por
pedestal. E no cimo da montanha, em uma garganta do São Bernardo, repousa o
salvador de Marengo, olhando a Itália, palco da sua glória.
Os pintores franceses
acompanharam a ascensão do vitorioso e com a cor, que d'Annunzio caracteriza
como esforço da matéria a querer ser luz, iluminaram a epopeia: Raffet, as
avançadas tumultuárias; Vernet, o incomparável, a tragédia dos combates; Gros,
os triunfos pessoais do César; David, o esplendor sereno da conquista, -
Napoleão sagrado em Notre-Dame, quadro histórico sem rival, que um crítico
apelida de “processo verbal épico”. E Austerlitz, Wagran, Yena, Eylau - a
Europa repetida em uma vasta tela de batalhas.
Le Petit Caporal era
artista incomparável, conhecia como ninguém a cenografia épica: no cemitério de
Gratz, o 84 de linha resiste, firme na morte, ao embate furioso de 20.000
austríacos. Proclamada a vitória, Napoleão dirige-se imediatamente ao reduto
dos bravos: um tambor toca a reunir; formam os sobreviventes, algumas dezenas;
em continência, uma bandeira, crivo de balas. O Imperador aproxima-se, escreve
nas dobras: 10 contra 1.
A própria fotografia,
negação da arte pelo servilismo da cópia, com semelhante modelo, produz telas
imponentes.
[...]
Robert de la
Sizeranne, que escreveu sobre a estética das batalhas, afirma que o escultural
e o pinturesco desapareceram da batalha moderna e cita o fato da vitória de
1870 não haver produzido do outro lado do Reno obra de arte de valia.
Acrescenta ainda que, mesmo do lado dos franceses, as telas que se destacam
como obras-primas, representam simples episódios heroicos de soldados ou de
pequenos grupos de batalhadores.
Sizeranne é mau
esteta. A observação é bem feita, mas não prova o postulado.
Os alemães, admiráveis
no domínio da ideia pura, nunca o foram nas artes plásticas. Taine diz de
Corneille haver criado as primeiras tragédias e fabricado as últimas. Os
alemães fabricaram milhares de quadros, jamais criaram uma tela imortal.
Depois, batalha é o
épico através da pintura e da escultura. Não há épico sem herói e o herói em
1870 foi o solado francês. Natural que as telas francesas imortalizem o seu
herói.
De resto, os alemães,
patrícios de Wagner, o gênio mais cenográfico da humanidade, na opinião de
Nietzsche, não souberam realizar na arte a cenografia prévia do personagem
épico.
A Moltke,
representante máximo da sua glória militar moderna, tiveram o mau gosto de
perpetuar a figura em painéis fotográficos, pintando-lhe uma a uma as
protuberâncias do rosto enrugado, em franca senilidade.
O herói é belo: Canova
deu a Napoleão uma efígie capitolina de Augusto.
Engana-se Sizeranne:
na batalha moderna, como na antiga, a arte tem fonte perene de inspiração. Que
é o “1814” de Meissonier? Episódio comum de qualquer guerra, em qualquer tempo:
um estado-maior avançando numa planície nevada, paralelamente a divisões que se
deslocam. No entanto, “1814” é uma grande página épica: à frente desse
estado-maior, marcha, pensativo, ainda cheio de fé, Napoleão, o herói.
Retirai-o da tela e restará um quadro banal, tecnicamente bem feito.
Afirmar que só a
batalha antiga é esculturável, grande ilusão! É que só podem reproduzir e
plasmar batalhas artistas superiores. O divino Leonardo formulou um axioma,
dizendo: a ciência progride sempre, a arte, o gênio, aparece e desaparece como
os meteoros. Mas, reaparece sempre, e, quando surge, um Rude faz da
“Marselhesa” um hino de pedra que não inveja rivais na escultura antiga.
A expressão das
paixões transmuta-se com os séculos, mas a beleza delas mantém-se.
Qual mais empolgante:
Édipo, com as órbitas vazias no bosque sagrado das Eumênides, amaldiçoando as
filhas ingratas, ou o Père Goriot, numa mansarda de Paris, despojado de tudo,
entre estranhos, moribundo, vivendo da esperança de revê-las? São duas
perfeições. A arte é imortal e não se repete; o seu símbolo supremo é Afrodite:
o amor e a beleza, entrelaçados na luta.
(Heroísmo e arte, 1936).
*
Engenheiro militar, poeta, biógrafo, ensaísta e conferencista, membro da
Academia Brasileira de Letras.
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