O engenho de seu Lula
* Por
José Lins do Rego
Chegou a abolição e os
negros do Santa Fé se foram para os outros engenhos. Ficara somente com seu
Lula o boleeiro Macário, que tinha paixão pelo ofício. Até as negras da cozinha
ganharam o mundo. E o Santa Fé ficou com os partidos no mato, com o negro
Deodato sem gosto para o eito, para a moagem que se aproximava. Só a muito
custo apareceram trabalhadores para os serviços do campo. Onde encontrar mestre
de açúcar, caldeireiros, purgador? O Santa Rosa acudiu o Santa Fé nas
dificuldades, e seu Lula pôde tirar a sua safra pequena. O povo cercava os
negros libertos para ouvir histórias de torturas.
Fazia-se romance com
os sofrimentos das vítimas de Deodato. Quando o carro do capitão Lula de
Holanda passava, corria gente para ver o monstro, todo bem vestido, com a
família cheia de luxo, que ia para a missa. Um jornal da Paraíba falara em
crimes da escravidão e nomeava o Santa Fé, o Itapuá, como de senhores algozes.
D. Amélia leu o artigo e chorou com as palavras impiedosas. Não era assim. Tudo
aquilo perturbava a vida do Santa Fé. Ela bem que sentia que o marido vinha
mudando de humores. Raras vezes era aquele Lula de outrora, de olhar
cismarento, o homem de tanta ternura para com sua mulher. Agora não parecia que
a quisesse como antigamente. Via-o no pegadio com a filha que voltara do
colégio de Recife, uma moça feita. Neném era a cara do pai. Dela não tinha
coisa nenhuma. Achava linda a sua filha. Tinha aqueles cabelos louros, e os
olhos azuis, a pele macia, branca como alfenim. E era uma menina doce, tão sem
gênio que encantava a todo o mundo. Viera do primeiro ano do colégio das
freiras cheia de devoção, com modos de moça. O pai cercava-a de cuidados, de um
zelo que ela, como mãe, achava até exagerado. Seria a sua filha a moça mais bem
educada da várzea. Iam ao Pilar de carruagem, e reparava como o marido olhava
embevecido para a menina, no banco da frente, vestida como gente grande. Sabia
que o povo falava mal de seu marido. Via os olhares que sacudiam em cima de
todos quando entravam na igreja. No tempo de seu pai tudo era bem diferente.
Viam-se cercados dos conhecidos do Pilar, das filhas do juiz, das irmãs do
padre, dos amigos do capitão Tomaz. Agora era sair do carro e entrar na igreja:
voltar da igreja para o carro. O que haveria contra Lula para aquela
hostilidade? Seria que fosse inveja? Lula era homem de sua casa, de certo
trato, de orgulho que ela não apoiava. Era o orgulho do marido. Havia nele uma
maneira de sentir as coisas que talvez desgostasse a gente do Pilar. Lula
falava de sua família de Pernambuco com soberba. Não procurava discussão com o
marido por motivos assim, sem importância. Deixava que ele ficasse com seu
orgulho de raça. Para que brigar? Família era para Lula coisa sagrada. Fora
infeliz com o pai, sofrera o diabo com a mãe viúva, perseguida pela política.
Lula tinha razão de falar do seu povo com aquela arrogância toda. Em casa ele
só via a filha. Dizia sempre que Neném era a cara da sua mãe. Nunca vira
semelhança igual. Tinha tudo da família de Recife, dos velhos Chacon, gente que
sabia entrar e sair, gente de trato, sem aquela bruteza dos engenhos. D. Amélia
não contrariava o marido mas sentia-se com aquele falar de desprezo com os
seus. Por que Lula falava assim contra o povo dos engenhos?
Não era ele parente do
povo do seu pai? Até aquele dia não tivera a menor rusga com o seu marido. O
que ele queria que fizesse, fazia sem protesto. Neném era como se só fosse
filha dele. Lula fazia de pai e de mãe da menina. A princípio achou bonito aquela
dedicação do marido. Tudo que fosse para Neném teria que ser feito por ele.
Agora via que Lula exagerava. Moça só se entendia bem com a mãe. Seria a mãe
quem saberia melhor de sua precisão, de seus desejos. Lula fazia de Neném toda
a razão de sua vida. Quando a menina estava no colégio escrevia cartas
compridas, longas cartas que ela não sabia o que mandavam dizer. Que assunto
teria o seu marido para escrever tanto a uma filha moça de colégio? Não lhe
falava daquilo para que ele não desconfiasse. Neném escrevia muito ao pai. Às
vezes, Lula lhe lia as cartas da filha, doutras não lhe mostrava nada.
Perguntava-lhe:
- Então, Lula, o que
Neném mandou dizer?
O marido dava uma
desculpa qualquer e mudava de assunto. Neném era uma menina tão cândida, tão
doce. Tinha receio que as cavilações do pai estragassem a menina. Por mais que
temesse não se meteria a contrariar o marido. Lembrava-se da fúria que se
apoderara dele quando o procurou para condenar as ações de Deodato. Sabia que
os negros estavam apanhando sem necessidade e procurara Lula para lhe falar
daquela miséria. Nunca vira uma pessoa exasperar-se tanto. Era como se ela
tivesse se revoltado. Vira o que sua mãe sofrera com a malquerença de Lula.
Pobre de sua mãe que se dera como uma escrava aos seus deveres. Fora ingrata
com ela. Uma das coisas que mais lhe doíam era pensar na morte dela, depois
daquela noite da discussão com Lula. Tudo por causa de Neném. Aquele amor de
seu marido, aquele cuidado pela filha, não podia ser boa coisa para a criação
da moça. E era todo o pensamento de D. Amélia. Os negros do engenho se foram,
até as negras de sua mãe não quiseram ficar na cozinha. Os do Santa Rosa haviam
ficado na senzala. Eram amigos do senhor de engenho. Se o seu pai estivesse
vivo, tudo seria como no Santa Rosa. Via-se D. Amélia cercada de pensamentos
que não desejava que fossem seus. Lula não gostava dos negros. No dia da
abolição os pobres foram para a frente do engenho, doidos de alegria. Teve
medo. O feitor ganhara a catinga, e Lula trouxera para a sala os clavinotes
armados. Os negros cantavam no pátio, com uma fogueira acesa. Ninguém dormiu
naquela noite. A negra Germana chorava como menina. A cantoria era de coco, era
de reza, era dança, e ao mesmo tempo parecia um bendito de igreja. Lula trancara
Neném no quarto, e de clavinote entre as pernas ficara sentado no sofá, à
espera de inimigo que lhe viesse ao encontro. A noite se foi, a madrugada
apareceu. Na estrada, os negros dos outros engenhos passavam aos gritos.
Gritaram na porta da casa-grande. Lula permanecera na porta e eles partiram.
Era um cabra do Pilar, com um grupo de negros.
- Capitão, nós estamos
atrás de Deodato.
Lula, com a voz
trêmula de raiva, não se conteve. Aos gritos respondeu que fossem para o
inferno. O cabra não continuou, mas quando o capitão Lula de Holanda cessou a
raiva ele foi dizendo:
- Capitão, nós estamos
aqui para pegar o seu feitor. É ordem do delegado.
- Ordem de quem? Ordem
de quem?
E D. Amélia viu o seu
marido pegar do clavinote e apontar para os negros:
- Cambada de
cachorros, saiam de minha porta senão mando fogo.
Os negros se foram de
cabeça baixa, e ela viu pela primeira vez uma coisa horrível. O seu marido
empalidecer, procurar o sofá e cair com o corpo todo se torcendo, como se tudo
nele fosse se partir. Aquilo durou uns minutos, mas foram os instantes piores
da sua vida. A baba branca que saía da boca de Lula, o bater desesperado dos
braços, das pernas, fizeram-lhe medo. Correu para dentro de casa. E não havia
uma viva alma lá dentro. Todas as negras tinham se ido. A casa vazia. Só Olívia
no quarto falava, falava sem parar. Voltou para a sala e viu que Lula voltava a
si, e teve pena de ver o marido no estado em que estava.
- Amélia, Amélia,
manda Germana preparar um escalda-pé para mim.
E com aquela impressão
terrível voltou para a cozinha. Lá havia um silêncio mortal. A cozinha do Santa
Fé, sem uma negra, despovoada de sua gente. Todos se foram, todas as negras
ganharam o mundo, até a negra Margarida que criara Neném. Não havia quem quisesse
ficar no Santa Fé. O ataque de Lula obrigara-a a pensar na vida com medo. O
marido era um homem doente. Vivera com ele até aquele dia e nunca acontecera
nada demais. Era um homem de boa saúde. E de repente vira-o naquele estado de
penúria. Sofria de ataques. E quando apareceu com a bacia com a água quente,
Lula parecia que voltara da morte. Tinha os olhos fundos, a cara de um homem
dez anos mais velho. Ficara ele em silêncio absoluto até o dia seguinte. A
noite, na casa-grande, Olivia resmungava, falava, com aquela agonia de sempre.
Ela estava só, completamente só. Lula deitara-se para dormir. Começou a ter
medo. Era capaz de os negros libertos de outros engenhos aparecerem ali para
atacá-los. As cantorias do coco enchiam a noite de um batecum que não parava.
Agora percebia bem o canto da negrada, lá para as bandas do Pilar. Os negros
dançavam de alegria, na festa da liberdade. Os negros de seu engenho, os que
foram de seu pai, estavam no coco fazendo o que bem quisessem.
[...]
O senhor de engenho do
Engenho Velho começou a luta contra o Santa Fé. O Dr. Eduardo do Itambé, moço
de fama, advogado de força, tomara a defesa do seu Lula. Todos os senhores de
engenho da várzea ficaram com ele. O José Paulino do Santa Rosa mandou chamar o
catingueiro e pediu para ele parar com a questão. O homem, porém, estava com
vontade de ir longe. Viu-se então seu Lula criar alma nova para lutar pela
terra. O homem calado, taciturno, deu para andar pelo Pilar, pelo Itambé, pela
Paraíba, com uma energia que não se esperava dele. Não era um ladrão de terra.
No jornal "O Norte" apareceu um artigo assinado pelo seu adversário
pedindo justiça ao governador. Sentia-se perseguido pelos senhores de engenho
da várzea. Seu Lula revidou com palavras duras. Falou em Nunes Machado, na família
dos homens sérios, na miséria da injustiça. E a questão correu, com a
diligência e os incidentes normais. Mas tudo ficaria sem nada demais, se não
fosse a agressão que o cabra do Engenho Velho tentou contra seu Lula no
cartório de Manuel Viana. Quando descera ele do cabriolé e ia falar com o
escrivão, o homem apareceu-lhe para tomar satisfações. Seu Lula virou-lhe as
costas e o homem insistiu. Então trocaram palavras e o homem levantou a mão
para seu Lula, com gritos de injúria. Manuel Viana evitou a agressão.
E pela várzea correu a
história como um crime. Tinham querido dar no senhor de engenho do Santa Fé. O
cel. José Paulino do Santa Rosa montou a cavalo e foi ao Engenho Velho. E de lá
voltou com a questão morta. No outro dia passariam a escritura da propriedade.
Comprara o Engenho Velho para servir ao inimigo apertado. Dera pelas terras
mais do que elas valiam para que ali na várzea não existisse um cabra atrevido
que ousasse fazer aquilo que estava fazendo com o Santa Fé.
Seu Lula e a família
foram de cabriolé agradecer a intervenção generosa do vizinho. E nem parecia
aquele homem calado, seco, taciturno. Falou naquela tarde para espanto de sua
gente. D. Amélia e a filha na conversa com as moças da casa-grande, e seu Lula
a falar em voz alta, a contar casos de parentes do Recife, a falar de Nunes
Machado, das lutas do seu pai, no berço das matas de Jacuípe. Quando voltaram
para a casa, já era de noite. As cajazeiras da estrada pareciam cobertas de
cal, de tão brancas. As rodas do cabriolé enterravam-se na areia fofa e os
cavalos corriam e as campainhas acordavam os pássaros dormiando, espantavam os
calangros. Uma raposa cortou a estrada aos saltos, e os faróis do carro
pareciam olhos que se encandeavam na luz branca da lua. D. Amélia e Neném falavam
das filhas do cel. José Paulino, da alegria, da bondade de todas elas. Mas seu
Lula de repente sentiu-se coberto de vergonha. Era um medroso, era um homem sem
força, no meio dos outros. O boleeiro desviava o carro duma poça d’água. Mais
para diante era a casa do seleiro Amaro, homem valente que viera de Goiana, com
uma morte nas costas. Seu Lula passou pela porta do seleiro e pela cabeça
atravessou-lhe uma idéia como um relâmpago. Por que não se servira do velho
Amaro para se defender contra o cabra atrevido? Poderia ter liquidado o
atrevido e não ficar, como ficara, um homem que precisara da proteção dos
outros para resolver uma questão que era sua só. Não era um senhor de engenho.
O carro parou na porta, e a lua iluminava os números do portão: 1850. Tempo de
fartura, de força. Entraram, e o cheiro de mofo da sala de visita era como um
bafo de morte. O piano, os tapetes, os quadros na parede, o retrato de olhar
triste de seu pai. O capitão Lula de Holanda pegou no braço da cadeira, e a sua
vista escureceu, um frio de morte varou-lhe o coração. Caiu no chão,
estrebuchando. A mulher e a filha pararam estarrecidas perto dele, que batia
com uma fúria terrível. Era o ataque. D. Amélia não deixou que Neném se
chegasse para perto, mas ela pegou-o, pôs-lhe a cabeça no seu colo, e as
lágrimas corriam de seus olhos sobre o pai, como morto, parado, agora, como se
estivesse num sono profundo. Na cozinha, D. Amélia esquentou a água para o
escalda-pé do marido. Passara uma tarde tão feliz, e agora Lula tinha aquele
ataque, na presença da filha. D. Olívia falava muito alto, gritava. A lua
entrava pelas telhas de vidro da casa-grande, a lua que pintava as cajazeiras,
que dava ordens em D. Olívia, que fazia os cachorros uivarem na solidão.
Dois dias depois, seu
Lula ainda estava de cama e o cel. José Paulino passava no Santa Fé para
oferecer ao vizinho a patente de tenente-coronel do batalhão da guarda nacional
que o governo pedira para ele organizar no Pilar.
(Fogo morto, 2ª parte,
capítulo 4, 1943.)
*
Romancista e jornalista, membro da Academia Brasileira de Letras.
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