O Brasil no Beco da Bosta
* Por
José Ribamar Bessa Freire
O Brasil inteirinho
cabe no Beco da Bosta, no bairro de Aparecida, em Manaus. Quer ver? Lá, no
quintal compartilhado por várias casas, havia um banheiro com sentina, de uso
comum, devassável através das frestas na parede de ripas. Cada vez que a Das
Dores ali entrava, o sapateiro Ceariba ia brechá-la, fazendo justiça com as
próprias mãos. Até que um dia cruzou no quintal com o filho dele, Etelvino - o
Téo Xarope - e deu-lhe uma surra com cinturão de couro, deixando-o exangue com
marcas da fivela por todo o corpo. E ainda fez um discurso moralista para todo
o bairro ouvir:
- Moleque indecente!
Depravado! Isso é para aprender a respeitar moça de família.
E o menino nem estava
brechando. Fez apenas o que fazem no futebol de rua: pulou o muro para buscar a
bola que quicou ao lado do banheiro no momento em que o pai espiava Das Dores.
Diante do flagrante, o Ceariba inverteu o jogo: fez um escândalo e usou o
discurso da virtude para neutralizar sua fama de tarado e poder assim brechar
em paz, não hesitando em espancar brutalmente o próprio filho. Logo depois da
surra, tudo voltou a ser como o diabo gosta no Beco da Bosta. Entre uma e outra
meia-sola, o sapateiro continuou abicorando a ida da moça à sentina, ali de sua
oficina aberta para o quintal. Mesmo assim, parte de sua clientela, levada
pelas aparências, acreditou que a criança estava brechando, afinal filho de
peixe, peixinho é - diziam.
- O Ceariba erra
quando brecha, mas acerta ao castigar o filho brechador, a quem tem de educar -
concluíam, aprovando o espancamento da criança, achando que assim se
moralizaria o quintal.
Derrota do pensamento
Eis o que eu queria
dizer: o presidente da Câmara de Deputados, Eduardo Cunha é o Ceariba. Réu em
diversos processos já acatados pelo STF, ele e seus cupinchas são todos Ceariba
- Jucá, Temer, Pauderney, Maluf e 35 deputados
da Comissão de Impeachment indiciados por corrupção. Como o Ceariba, usam o
poder para esconder suas falcatruas. Justificam com discurso de honradez e
integridade o golpe que não ousa revelar o nome. Golpistas nunca aceitam serem
assim chamados, disfarçam sempre com outras denominações. O golpe militar de
1964 foi apelidado por seus autores de
"Revolução".
Será que não dá para
desconfiar quando tantos corruptos juram que lutam contra a corrupção? O
empresário Ricardo Pernambuco Jr. da Carioca Engenharia, em delação premiada à
Procuradoria-Geral da República na Operação Lava-Jato, entregou uma tabela que
aponta 22 depósitos somando US$ 4.680.297,05 em propinas pagas ao presidente da
Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), entre 10 de agosto de 2011 e 19 de
setembro de 2014.
É esse cidadão que
comanda o golpe contra a presidente eleita por 54 milhões de brasileiros, num
processo empobrecido no qual não se discute o país. Os parlamentares, em
sessões transmitidas pela televisão, dão um espetáculo deprimente com insultos,
ofensas pessoais, gritos e até troca de sopapos e empurrões, com pouca
argumentação. Parece até - diz o Macaco Simão - tiroteio entre facções pelo
controle da boca de fumo.
Qualquer que seja o
resultado da tentativa de golpe neste domingo, uma coisa é certa: o Brasil sai
politicamente enfraquecido, deprimido, desinformado, ferido, envenenado, cheio
de ódio, com um congresso nacional que enxovalha e envergonha o país e a
cumplicidade de uma mídia quase sempre conivente com a truculência triunfante e
a derrota do pensamento.
Há raras exceções. No
domingo passado, o caderno Ilustríssima da Folha de SP formulou para 31
intelectuais representativos da intelligentsia brasileira, a pergunta: E você,
é a favor ou contra o impeachment? A
maioria se manifestou contrária, incluindo muitos que não votaram em Dilma. As
cabeças pensantes desse país nos oferecem argumentos que convidam à reflexão.
Discurso do Ceariba
O escritor e artista
plástico Nuno Ramos justificou: "Eu não votei nela, votei nulo, mas como
não vejo vínculo pessoal da presidente com falcatruas, acho que quem apertou o
botãozinho com a foto dela, arrependido ou não, merece respeito. Sou contra a
saída da presidente".
O professor da Unicamp
Luiz Gonzaga Belluzzo esclareceu: "Sou contra. Quem viveu 21 anos sob o
guante da ditadura desenvolveu anticorpos que identificam rapidamente os vírus
do arbítrio. Dilma recebeu o mandato pelo sufrágio universal. Presidente não
pode ser tratado como técnico de futebol: "a gente trocamos" se a
galera não está gostando".
Ângela Alonso,
professora de Sociologia da USP considera que "os argumentos contrários ao
governo - estelionato eleitoral, má gestão, impopularidade - são insuficientes
para justificar a interrupção de um mandato. Se combate à corrupção fosse a
motivação de fato, seu alvo primeiro deveria ser o presidente da Câmara contra
quem pesam acusações seriíssimas e fartamente demonstradas".
Vários intelectuais
destacaram que se o golpe vencer, a Operação Lava-Jato já era. A Polícia
Federal, com Michel Temer, não terá a autonomia que goza atualmente. Temer pode
até sacrificar um ou dois figurões, mas depois abafa tudo para proteger seus
cúmplices com quem contraiu dívida por ter sido alçado sem nenhum voto à
condição de presidente e volta a fazer exatamente o que sempre fez com o
silêncio e a cumplicidade da grande mídia.
Essa é a opinião do
professor de ciência política da Universidade Federal Fluminense, Jessé Souza,
presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA): "Está
acontecendo um golpe. Sem respeito à soberania popular, haverá um quadro de
caos e violência (...) O golpe tem um braço midiático de combate seletivo à
corrupção, que é a senha da manipulação de um público desinformado e atende a
necessidades econômicas do andar de cima. Não se trata de combate à corrupção,
mas de ganho de poder".
Lendo os depoimentos
tão convincentes de intelectuais que pensam o Brasil, fiquei matutando e me
perguntando: por que muitas vezes a razão é derrotada pela truculência? Como é
possível que a podridão dos Cunha e Ceariba tenha êxito em anestesiar
consciências, em levar pessoas de bem a agirem contra sua própria condição
oprimida? Por que a inteligência parece ser tão impotente para barrar o golpe?
Será?
Se golpe houver, o
Brasil entrará definitivamente no Beco da Bosta. O país vai feder ainda mais.
*
Jornalista e historiador.
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