Abordagens distintas de duas
testemunhas da peste
A chamada “Era Tudor”, sobretudo os reinados da rainha
Elizabeth I e do seu sucessor, Jaime I, foi um período memorável para a
Inglaterra. Foi quando o país emergiu, por exemplo, como vasto império, como superpotência
mundial, próspera e militarmente poderosa, sobrepujando uma Espanha, então em
decadência. Seus navios singravam todos os mares do Planeta, levando e trazendo
toda a sorte de mercadorias, de e para
todos os países do mundo. E não só isso. Culturalmente, a Inglaterra conheceu
uma era das mais luminosas e vibrantes, com a emersão de grandes poetas, de
dramaturgos inigualáveis, de destacados filósofos, enfim, de intelectuais dos
mais respeitáveis e acatados. Paradoxalmente, a época que medeia de fins do
século XVI a pelo menos metade do século XVII, foi, também, caracterizada por
várias catastróficas epidemias de peste bubônica, que ceifaram milhares vidas e
deixaram marcas indeléveis na população inglesa.
A despeito do flagelo não fazer distinção de classe ou de
fortuna, as mais afetadas foram, obviamente, as pessoas pobres, carentes de
informações e de quaisquer recursos. Os ricos tinham condições de viajar, de se
afastar do foco da enfermidade e de permanecer fora do país enquanto esta não fosse
controlada. Já os de escassas posses, e principalmente os que nada tinham (a
imensa maioria) contavam, apenas, com o fortuito, com o acaso, com
circunstâncias que não dependiam nem um pouco deles, para não serem vítimas da
peste. Não tinham como fugir. Citei, em textos anteriores, um punhado de livros,
de alguns escritores famosos desse período, que trataram, em suas obras, cada
qual de sua forma, dessas epidemias. Por mais meticuloso que eu busque ser em
minhas pesquisas, é até impossível tratar de “todos” os que escreveram sobre o
assunto. Há que se considerar, entre outros tantos obstáculos, o principal
deles: o tempo. Afinal, quase quatro séculos nos separam destes escritores.
Antes de dar o assunto por encerrado, todavia, devo
mencionar outros dois escritores, mesmo que se trate de abordagem somente
superficial de seus respectivos relatos das epidemias que testemunharam (e das
quais escaparam incólumes). O primeiro é o memorialista, poeta e dramaturgo
George Wither (1590-1667). Ele estava em Londres quando ocorreu a epidemia de
1625. Tratou dela em extenso poema, cujo
título pode ser traduzido como “O memorialista da Bretanha”, que publicou em
1628. Em seus versos, alterna denúncias do que entendia como “crueldade dos
tempos”, com previsões que fez sobre as catástrofes que a Inglaterra sofreria
adiante. Errou todas. Lendo seu poema, a despeito das dificuldades que um texto
em língua estranha à nossa tendem a trazer, concluo que Wither foi não somente
mau poeta, como péssimo profeta. No segundo caso, eu aduziria: “felizmente para
seu país”. Caso suas tétricas profecias se concretizassem, a Inglaterra jamais
se tornaria o poderoso império em que se tornou. Talvez até desaparecesse do
mapa.
O outro escritor, que tratou de epidemias de peste, é o oposto
de Wither, no que diz respeito à qualidade literária de sua obra e á projeção,
que o torna bastante conhecido nos dias de hoje. É o prolífico e excelente
dramaturgo Thomas Dekker (1572-1632), contemporâneo de William Shakespeare, do
qual teria sido ora rival, ora parceiro. Oportunamente, e em outro contexto,
proponho-me a tratar de sua rica biografia. Ele escreveu vários textos sobre a
peste, com destaque para três deles: “News From Gravesend”, “The Meeting of
Gallants at an Ordinary” e, principalmente, a peça teatral “O ano maravilhoso”.
Neste último caso, soa como irônico o título dessa obra, já que ela trata da
epidemia de 1603, época em que a peste era tão severa, que os teatros,
principalmente os de Londres, foram todos fechados.
Outra coisa que me leva a estranhar o título dessa peça foi
que, nesse ano específico, ocorreu a morte da rainha Elizabeth I, que tanto
incentivou as artes na Inglaterra, sobretudo a dramaturgia, pela qual era
obcecada. Sua descrição da epidemia lembra muito a feita por Daniel Defoe,
concentrando seu foco nos dramas e agruras da população pobre, entregue não
digo “á própria sorte”, mas ao seu supremo azar. Thomas Dekker foi um escritor
tão importante (e também como poeta) que até hoje persiste uma polêmica,
envolvendo um poema que compôs, intitulado “Golden slumber” (que eu traduziria
como “Sonho dourado”). Diz-se que a letra de famosa composição com esse mesmo
nome, atribuída à dupla Paul McCartney e John Lennon, uma das faixas mais
conhecidas e apreciadas do célebre LP dos Beatles, “Abbey Road”, seria plágio
dos versos do poeta renascentista.
Polêmicas à parte, parece-me que é mesmo. Sabe-se que em
1969, Paul McCartney criou a tal canção, mas baseado em texto de Thomas Dekker.
O Beatle teria visto os tais versos no caderno de música de sua meia irmã Ruth.
Ele estava na casa do pai, em Cheshire, brincando ao piano. Enquanto folheava
um livro de músicas, que pertencia a Ruth (o velho Jim McCartney tinha se
casado de novo), Paul se deparou com “Golden Slumbers”. Dekker a criou como
canção de ninar. Sem conseguir ler a música, McCartney criou sua própria
melodia, adicionando, aqui e ali, novas palavras, enquanto dedilhava. O “plágio”
seria, portanto, apenas da letra. Mas... Bem que os Beatles poderiam ter dado
“parceria”, posto que póstuma, a Dekker, cujos descendentes sequer cobrariam
(nunca cobraram) direitos autorais, já que a composição tornou-se de domínio
público. Mas esse fato mostra claramente a qualidade e a importância do
escritor renascentista, contemporâneo de Shakespeare.
Boa leitura.
O Editor.
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Até os gênios copiam, mas acho que não deveriam.
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