Olhar
* Por
Emanuel Medeiros Vieira
Entendo o olhar das
pessoas. É o que sei – perco documentos, tenho que fazer segunda via, mas
entendo o olhar das pessoas.
Não é muito? Sei pouco
do resto.
Ela era frentista dum
posto de gasolina na 315 Sul.
Tinha uma filha que
estudava numa escola pública.
Foi assim, assim.
Conversando.
Queria sair com a
moça. Ela era brava demais. Ela era terna demais. Não ao mesmo tempo. Não sei
explicar.
Cansada de receber
cantada dos rapazes ricos da região, ela levando aquela vida dura, começando às
seis da manhã, tendo que sair antes das cinco de casa.
Quem sabe, ele também
conhecesse o olhar das pessoas.
Quando falo em olhar,
estou dizendo coração, alma, vísceras, tudo.
Se quase sempre o
outro era um inferno na nossa vida, às vezes um momento poderia ser bom – mesmo
um tempinho só, relâmpago, nuvem bem breve.
A moça não entendia o
meu interesse em relação a ela.
Tirou o macacão, a
jornada estava encerrada.
Não haveria mais posto
de gasolina naquele dia.
Quando voltou, parecia
outra pessoa, cabelos escorridos, lábios pouco pintados, sorridente, tão
feminina.
O uniforme do serviço
não era ela. O uniforme era só o uniforme.
– Você é bonita.
Num segundo, num só
segundo, contemplei a árvore em frente. Nós os viventes, vamos existindo assim,
todos os dias, o tempo não parando, sem saber quando sairemos desse mundo. É
esse viver diário que leva à eternidade? Não, não queria fazer filosofia, não
queria parecer pessimista, não queria pensar no mundo, nada, só desejava sair
com a moça.
– Você está falando
sozinho? – ela me perguntou sorrindo.
– Eu sempre falo
sozinho. Mas para dentro.
Sorri para ela.
– Às vezes, falo com
os outros. Converso com bichos, plantas, árvores, e com os meus diabos.
Ela riu de novo, com
simpatia. Mais um louco, talvez tenha pensado.
– O senhor é estranho,
diferente – e olhou-me fixamente.
Também ri. Era o dia
das “filosofices”. Somos todos estranhos – monologuei.
– Me chama de você, eu
pedi.
Ela me olhou de novo,
mais profundamente ainda.
– O senhor é diferente
dos outros homens que abastecem aqui e daqueles que moram perto de mim.
Sempre o “senhor”.
Ela morava no entorno,
já em Goiás.
Não havia perguntado o
seu nome. Então, é “ela”. Sempre “ela”.
– Você sempre escreve
a mesma coisa.
Eram os meus diabinhos
que falavam.
Eu sei, mexo no
estilo, mudo, corto, vario, mas não adianta. Não mudo os temas ou os temas é
que não mudam?
– Você sempre tem um
álibi para a repetição.
Os velhos demônios não
se convenciam.
Nunca concordavam
comigo.
Mas essa vida é sempre
igual – tentei argumentar
Os demônios me deram
um sossego.
Pensei no que
monologara: mas essa vida é sempre igual. Sinceramente, acho que não está
igual.
Está pior. Mais
aborrecimento, mais Mal, mais trânsito, mais dor. Os diabinhos riram. Parecia
um coral.
– Está incomodado com
a velhice? – eles indagaram. Pareciam ainda mais sardônicos.
– Está tão queixoso…
– Está perturbado com
a morte que virá?
Foram três perguntas
seguidas.
– Não adianta, vamos
todos morrer – os capetas constataram, e riram intensamente.
Eles falavam. Eu
fiquei quieto.
– Não adianta, você
continua o velho moralista – falou um diabo.
Um demônio pareceu
cutucar o outro.
Todos me cutucavam.
As religiões existem
por causa do medo da morte – eu falava para dentro.
– Assaltaram o posto
ontem à noite, mas eu trabalho de dia – a moça me informou.
– Ainda bem – e
senti-me confortado.
– Você tem alguém? –
indaguei.
– Tenho.
Tudo é sempre assim:
um filho, um marido, um ônibus, um emprego mixuruca, um lugar distante.
Não perguntei a sua
idade. Vinte e três anos?
Vinte e cinco? Isso eu
não sei responder.
Eu sei, já sou um
senhor. Estou mais perto Dela.
– No assalto, atiraram
no meu colega. Ele já tinha dado o dinheiro. Só atiraram por atirar.
Relatou o caso, como
algo da rotina. Sem qualquer drama. Como algo natural.
– E ele morreu?
– Está muito mal no
hospital.
Não sei a razão da
moça me relatado o ocorrido.
– Eu não tenho nem o
Segundo Grau – me contou.
Isso não me interessa
– eu falei com sinceridade e intensidade.
Os diabinhos riram:
sinceridade e intensidade…
– Eu nunca posso
buscar uma verdade humana?– perguntei irritado.
Os capetas continuaram
debochando.
Convidei-a para um
lanche.
Ela comeu um pedaço de
pizza como se estivesse vendo o mar pela primeira vez.
Era bonito de ver.
Tomando uma coca, botando molho na pizza.
– Eu pego o ônibus
aqui no Eixinho, ela informou.
– Vai em pé ou
sentada?
– Quase sempre em pé.
– Posso te deixar na
rodoviária, disse.
– Tá bom.
Ela contou também que
o gerente do posto a aporrinhava todos os dias.
Vingando-se nos
empregados das broncas do proprietário.
– Você é evangélica?
– Por quê?
– É que no entorno,
todo mundo parece que é ou vai ser.
– Não, eu não sou, mas
quase toda a vizinhança é. Só dá traficante e evangélico.
Chegamos à rodoviária.
Ela desceu do carro.
- “Tchau”.
- Tchau.
Arrumou o cabelo e
desapareceu no meio da multidão.
* Romancista, contista, novelista e
poeta catarinense, residente em Brasília, autor de livros como “Olhos azuis –
ao sul do efêmero”, “Cerrado desterro”, “Meus mortos caminham comigo nos
domingos de verão”, “Metônia” e “O homem que não amava simpósios”, entre
outros.
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