Maquiavel e a epidemia de peste de 1527
O leitor seria capaz de identificar o autor desta
declaração?: “Mas a ambição do homem é tão grande que, para satisfazer uma
vontade presente, não pensa no mal que daí a algum tempo pode resultar dela”.
Adianto que não se trata de nenhuma personalidade contemporânea. A afirmação
contém tanto de verdade, que eu não relutaria em assiná-la embaixo. Creio que
você também não hesitaria, estou certo? O mesmo autor afirmou, ainda: “Como é
perigoso libertar um povo que prefere a escravidão!” E também disse: “Em
política, os aliados de hoje são os inimigos de amanhã”. Juro que não se trata
de nenhum observador de nossa (brasileira) confusa realidade institucional.
Para culminar, cito este pitoresco desejo, de pura ironia, que manifestou com
estas palavras: “Quero ir para o inferno, não para o céu. No inferno, gozarei
da companhia de papas, reis e príncipes. No céu, só terei por companhia
mendigos, monges, eremitas e apóstolos”.
O autor destas polêmicas (e põe polêmicas nisso!)
declarações, entre uma infinidade de outras mais, viveu num tempo já bastante
remoto, nos séculos XV e XVI, em que manifestar opiniões tão politicamente
“incorretas” poderia custar a cabeça de quem ousasse agir assim. É tido e
havido (com absoluta justiça, no meu entender) como o primeiro “cientista
político” da história. Aliás, é considerado o “pai” dessa disciplina. Refiro-me
a um sujeito que despertou tantas inimizades e antipatias, que seu sobrenome é,
hoje, raiz de um adjetivo nada lisonjeiro, sinônimo de pérfido, de alguém que
age sem escrúpulos. Já concluíram de quem se trata? Quem pensou em Nicoló Maquiavel
acertou. Seu livro mais famoso (entre os tantos que escreveu, já que legou uma
obra relativamente extensa), “O príncipe”, é apontado, através dos tempos, como
exemplo de como não se deve fazer política. Embora seus detratores não
entendam, essa era sua verdadeira intenção.
Maquiavel nunca defendeu que a política devesse ser esse
jogo sujo de vale tudo, sem ética e sem escrúpulos, que nega as leis morais, em
que os fins justificam os meios, o que era no seu tempo (e o que é, salvo
exceções, e mais do que nunca, na atualidade). Limitou-se a relatar o que essa
atividade “era” e não o que “deveria ser”. Seus detratores é que não entenderam
sua ironia e sua incrível capacidade de observação. Daí haverem criado os
adjetivos “maquiavélico” e derivados, para caracterizar aquela “esperteza”
negativa e condenável, aquela astúcia que descamba para a malandragem. Nicoló
Maquiavel, nascido em 3 de maio de 1469, foi um dos gênios do Renascimento. Foi
historiador, poeta, diplomata e até músico (creiam!). Foi um dos intelectuais
mais lúcidos do seu tempo. Tem que ser considerado como uma das inúmeras
“glórias” de Florença, cidade em que nasceu e em que morreu (em 21 de junho de
1527), que foi berço de tantos gênios das artes, da cultura e do pensamento
contemporâneo, e que lançaram os fundamentos da atual civilização. Creiam-me,
não exagero.
Hoje, porém, não quero tratar de sua rica biografia e nem de
seus livros famosos, como “O príncipe”, “Discursos sobre a primeira década de
Tito Lívio”, da peça “A Mandrágora”, do romance “Novella di Belfagor”, do poema
“Asino d’oro” e nem de seus vários tratados histórico-políticos. Meu foco é um
texto de Maquiavel praticamente esquecido, intitulado “Descrição da peste de
Florença do ano de 1527”. O título já define seu teor. Frise-se que o fim da
Idade Média não acabou com as epidemias mortíferas que assolavam várias partes
do mundo, entre elas a Europa. É certo que não houve nenhuma outra pandemia
como a de 1347. Nem por isso, todavia, as epidemias deixaram de ocorrer ou eram
menos mortíferas. E Florença teve várias e várias e várias delas.
O que chama a atenção na descrição de Maquiavel do caso
ocorrido em 1527 em Florença é o inusitado “tom poético” que ele empregou para
descrever tão terrível flagelo. Ele escreveu, em determinado trecho desse
curioso texto: “(...) Estava sentada nos degraus de mármore da grande capela e
se apoiava sobre o lado esquerdo, como uma pessoa esgotada pela dor. Seu braço
reluzente de brancura sustentava a fronte, que o sofrimento havia tornado mais
pálida. Este braço, por seu tamanho, pertencia a uma mulher bem feita e de
dimensões equilibradas. Podia-se imaginar sem problemas que todos os membros
desse belo corpo formavam um conjunto tão perfeito que, se não estivesse
coberto por uma mortalha, sua admirável beleza teria deslumbrado todos os
olhares. Mas, deixando a imaginação adivinhar livremente o que não se via, só
lhes descreverei o que era possível ver (...)”.
Na sequência, Maquiavel descreve assim a infeliz vítima da
peste bubônica (que não identificou) que agonizava nos degraus de uma igreja:
“(...) Suas carnes, frescas e elásticas, tinham a brancura do marfim e sua
delicadeza era tão grande que conservava a suavidade e o frescor, da mesma
maneira que num campo a erva florida e úmida conserva o orvalho que cede sob os
movimentos do mais ligeiro inseto. Seus olhos, dos quais seria melhor não dizer
nada para não dizer pouco, pareciam duas estrelas brilhantes. E os abria tão a
propósito, e de maneira tão amável, que poderíamos crer estarmos vendo um
paraíso aberto (...)”. Esta foi a forma como Maquiavel descreveu uma vítima,
agonizante, da peste negra. Nenhum poeta faria melhor. Surpreende, sobretudo,
tendo em conta que quem fez essa lírica descrição era tido e havido como cínico
implacável, como crítico feroz das fraquezas e misérias humanas. No caso,
porém, vislumbrou somente beleza, posto que trágica...
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Ai, que horror! Já vi muita coisa feia, mas nem imagino o que seja uma pessoa com a peste negra. Maquiavel mostrou como é: dor.
ResponderExcluir