Implacável registro da vida londrina do
século XVII
O relato feito pelo inglês Samuel Pepys da epidemia de peste
bubônica que arrasou Londres em 1666 e 1667, e do incêndio que atingiu a
capital do Império em setembro de 1667 (que não só contribuiu, como
virtualmente eliminou a expansão e continuidade desse flagelo que, se não fosse
o fogo, provavelmente duraria muito mais tempo), é um dos mais detalhados, verossímeis
e completos que se conhece. O autor desses registros, todavia, sequer era
escritor. E, pelo que se sabe dele, jamais teve essa pretensão. Aliás, nunca
lhe passou, nem mesmo remotamente, pela cabeça que seus diários pessoais – um
calhamaço de seis grossos volumes, com mais de três mil páginas de texto, em
letra miudinha – fossem transformados em livro. Mas foram. E constituem,
provavelmente, o melhor relato de todos os tempos não só desse caso específico
de Londres, mas de todas as epidemias que já assolaram a humanidade desde o
surgimento do homem.
A convicção de que Samuel Pepys fez esses registros como uma
espécie de desabafo pessoal (personalíssimo) super íntimo e hiper secreto sobre
o que pensava e fazia é seu próprio teor. São revelações do tipo que não se fazem
nem para a pessoa na qual se tenha irrestrita e a mais absoluta confiança e que
se deseja, portanto, que permaneçam secretas. Tanto isso é verdade que o
diário, escrito durante nove anos, iniciado quando o autor tinha vinte e sete
anos de idade, foi todo redigido de forma taquigráfica (escrita que demandou
anos para ser compreendida e transcrita na língua corrente utilizada no
cotidiano). Nele, Pepys não se limitou a relatar fatos. Traçou um grande painel
da vida inglesa do seu tempo, em linguagem nua e crua, repleta, inclusive, de
palavrões, retratando principalmente a alta burguesia. Muito sincero,
sinceridade esta que provavelmente não teria caso sequer desconfiasse que seus
relatos um dia se tornariam públicos, não hesitou em expor, inclusive, suas próprias
e recorrentes infidelidades matrimoniais. Confessou pequenas fraquezas e
vaidades, em meio a passagens pitorescas, cômicas, emocionantes ou francamente
obscenas. Entre estas incluem-se desde o incêndio de Londres a pequenos
incidentes da vida cotidiana, dos salões e camarotes de teatro aos cafés
populares e bordéis do porto.
Para que fosse transformado em livro, cerca de duzentos anos
após a sua morte, foram expurgados trechos e mais trechos do que escreveu, a
bem da decência, tamanhos eram os casos escabrosos descritos e tão escrachada e
obscena era a linguagem empregada. Do que escapou desse expurgo, é possível
traçar o perfil de Pepsys, homem tipicamente do povo, cheio de vícios e paupérrimo
em virtudes, mas inteligentíssimo, conhecedor de várias línguas, como o
francês, o espanhol e o latim, entre outras. Por exemplo, é revelado nas
entrelinhas que se tratava de um homem
que detestava esportes e adorava tocar viola e flautim. Amava, à sua maneira, a
esposa, mas lhe era sumamente infiel e várias vezes por semana. Era um sujeito
de maus modos, embora freqüentador assíduo da corte do rei Carlos II, desses
que à mesa comiam carnes com as mãos e arrotava quando lhe dava na veneta.
Pepys era do tipo no qual não se podia confiar. Não
titubeava, por exemplo, em dormir com as esposas dos amigos, caso houvesse a
menor oportunidade para tal. Era enfatuado e vaidoso, tanto que se considerava
de classe alta (embora sendo plebeu). Era mesquinho a ponto de não se dispor a
gastar algumas míseras libras nem mesmo para comprar um vestido para a esposa.
Não relutava em esbofetear a mulher quando contrariado e muito menos espancar a
empregada quando esta, eventualmente, apenas deixava de fechar uma porta que
ele tinha ordenado. Tudo isso, e muito mais, ele relata (ou confessa) em seus diários.
Fica, como seria de se esperar, a impressão de que se tratava de um indivíduo
sem escrúpulos, sem moral e sem virtudes, em meio a uma sociedade perfeita.
Certo? Errado!
Pepys era somente o protótipo, a cópia exata do inglês
médio, que num passado nem tão remoto, no século XVII, era rústico, pouco educado
e sem os modos refinados que achamos que tinha. O governo de Carlos II era dos
piores da Europa, sumamente perdulário e de uma incompetência gritante. O rei equilibrava
os cofres públicos, invariavelmente saqueados, com sucessivos aumentos de impostos,
o que o tornava odioso e impopular. Mas... ele não dava a mínima a isso. A
economia inglesa, durante o reinado de Carlos II, ia de mal a pior. Os diários
de Pepys registram, pois, de forma nua e crua, sem disfarces e sem retoques, os
vícios do seu tempo. São, também, um exame de consciência pessoal. Nele não poupa
os políticos cínicos e oportunistas. Mas são também confissões das suas
aventuras amorosas. Claro que ele não teria coragem, como não teve, de escrever
o que escreveu de forma que qualquer pessoa entendesse. Para evitar que isso
acontecesse, recorreu a um sistema de escrita recém-inventado, em 1620, por um
obscuro professor inglês, um tal de Shelton, que pouquíssimos conheciam.
Para não me estender mais no assunto, transcrevo alguns
trechos esparsos dos Diários de Pepys sobre a peste que devastava a cidade,
como estes: “(...) Ontem foi o dia mais quente que já vi em minha vida (...) Hoje,
para meu pesar, vi, em Drury Lane, duas ou três casas com uma cruz vermelha na
porta e com a inscrição: ‘Que Deus tenha piedade de nós’. Triste espetáculo.
Nunca vi, em minha vida, nenhum outro parecido (...) O pátio estava cheio de
carros e de pessoas que se preparavam para fugir de Londres. Nesta parte da
cidade, a peste ganha terreno a cada dia. O boletim de mortalidade já chega a
267 mortos, noventa a mais do que na véspera. Só soube de quatro mortes na City
(...)”. E Pepys segue relatando, dia a dia, a evolução da epidemia, entremeando
esses relatos com as cruas e até escatológicas descrições de suas aventuras
extraconjugais, além de fofocas de pessoas às quais jurava amizade, mas que não
poupava em seus implacáveis registros.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Acertou na mão e na escolha do autor, já que o tema palpitante vem se repetindo, para nosso medo e gosto.
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