Epidemia de Milão enseja romance
comovedor
O território da atual Itália foi devastado por epidemias (supostamente,
de peste negra) por milênios, antes, durante e após o surgimento, apogeu e
queda do Império Romano. Quantos? Quem o sabe? É impossível saber isso e,
principalmente, quantas pessoas morreram em conseqüência desse flagelo. Não dá,
nem mesmo, para estimar, mesmo que com pequeníssima margem de acerto. Uma coisa
é certa: as cifras ascenderam a “muitos milhões” (quantos? Jamais se saberá!)
de mortos. Meu objetivo, porém, não é o de detalhar, fundamentado em documentos
históricos, as várias epidemias que atingiram não só essa região específica da
Europa, mas várias e várias outras partes do Planeta. Suponho que nenhum lugar
do mundo escapou desse mal. Pelo menos, é o que a simples lógica indica.
Fazê-lo seria tarefa comparável aos mitológicos “doze trabalhos de Hércules” e
não me sinto preparado para tamanho desafio.
Minha pretensão, que nem é tão modesta assim, é a de trazer
à baila a forma como “alguns” escritores relataram essas ocorrências. Dia
desses, conversando com um médico amigo, este fez uma observação
superpertinente a propósito. Observou que nem todas as epidemias, tidas e
havidas como sendo de peste bubônica, foram, na realidade, dessa doença. Muitas
foram de cólera, de varíola, de febre amarela, de tifo e sabe-se lá mais do
que. Faz sentido, pois se não se conhecia nem mesmo o que causava esses
mortíferos males, atribuídos a meros “castigos divinos”, as pessoas não
poderiam, é claro, distinguir a natureza da moléstia. Alguns leitores
observaram que concentrei meus comentários, até aqui, nas epidemias que
atingiram Florença. Pudera! Essa cidade (que já foi, inclusive, capital da atual
Itália, antes que Roma fosse conquistada em 20 de setembro de 1870 e tornada a
sede do governo do país) produziu escritores notáveis, que relataram com
maestria, com magistral perícia os estragos causados pela peste bubônica (se é
que foi esta a doença que tantas vidas ceifou naquela cidade, berço da
Renascença).
Contudo, trago à baila outra epidemia, esta, porém, ocorrida
entre 1621 e 1639, e na região italiana da Lombardia, então sob o governo
espanhol. Quem fez seu relato foi o escritor Alessandro Francesco Tommaso
Manzoni. Observe-se que ele não testemunhou, (como seus colegas florentinos do
século XIV testemunharam o que ocorreu em sua cidade), essa ocorrência. Nem
poderia. Nasceu quase 200 anos após essa epidemia (em 7 de março de 1785).
Certamente, deve ter feito muita pesquisa para apurar os dados que apresentou
em seu romance (clássico da moderna literatura italiana) “I promessi sposi”
(traduzido para o português com o título “Os noivos”). Esse livro, que
recomendo por seu altíssimo valor literário, pode ser encontrado em qualquer
boa livraria do Brasil.
A epidemia de que Manzoni trata foram, na verdade, vários
focos isolados da mortal doença que se convencionou reunir sob a denominação
genérica de “A Grande Peste de Milão” (cidade natal do escritor). Essa selvagem
ocorrência, que devastou todo o Norte da Itália, teria causado um número de mortos
estimado em 300 mil pessoas. O uso do verbo no condicional se justifica, já que,
se estimativas hoje em dia raramente são confiáveis, imaginem naquele tempo!
Essas cifras tanto poderiam ser muitíssimo maiores, como bem menores. Mas...
aceitemos esse número, já que o romance de Alessandro Manzoni, obviamente, é
obra de ficção e não de História. Portanto, não se exige dele exatidão, pelo
menos nesse aspecto. Há muito a se dizer, tanto sobre esse escritor, quanto
sobre o seu livro, o que não pretendo fazer num único comentário, sob pena de
estragar um bom assunto e limitar-me à superficialidade. Creio que esta é
excelente oportunidade para se conhecer um pouco mais a respeito de ambos.
Alessandro Manzoni, que também foi poeta e político (foi
senador do então Reino da Itália), é, consensualmente, entre os que conhecem
sua obra literária, um dos mais importantes nomes da Literatura contemporânea
de seu país. Apesar de ter vivido há tanto tempo (morreu em 22 de maio de
1873), seu romance mantém rigorosa e notável atualidade. Pessoalmente,
considero-o um dos melhores (se não o melhor) dos ficcionistas italianos de
todos os tempos, ao lado de figuras como Umberto Eco, Alberto Morávia, Dino
Segre (Pitigrilli) e um restrito punhado de alguns outros mais. O enredo de “Os
noivos” se passa em uma aldeiazinha da região, às margens do Lago Como.
A história de Manzoni, que se dá quando da ocorrência da
Grande Peste de Milão, é, em resumo, a seguinte: No dia previsto para seu casamento,
Renzo e Lúcia, dois honrados jovens da região, descobrem que o cruel senhor do
lugar, apaixonado pela noiva, pressionou o padre para impedir o matrimônio.
Forçado a se exilar, o desesperado casal é separado e, cada um dos parceiros
passa a viver uma quantidade enorme de aventuras até o dia em que ambos se
reencontram em um lazareto de Milão, no auge da epidemia de peste. Além do seu
valor ficcional, o livro apresenta detalhada documentação histórica do período
tratado, com minúcias que levam o leitor a achar que o autor testemunhou os
acontecimentos. São casos específicos a propagação da doença e a descrição do
ambiente geral da cidade, particularmente das cenas de psicose coletiva que lá
se verificou. Destaque-se o relato feito por Manzoni do lazareto que é, ao
mesmo tempo, chocante pelo realismo das imagens e comovente, pelo seu aspecto
profundamente humano. Voltarei ao tema.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
A doença amedronta e faz sentir dor e outros desconfortos. Quando se alastra, só mesmo a literatura para explicitar o que realmente se passa.
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