Capitães de areia e do asfalto
* Por
Marcos Vilaça
O registro dos
cinqüenta anos de Capitães da Areia nos traz de volta evocações da adolescência
literária, do tempo de juvenil ledor.
Retomando-o, por raro
prazer de ofício ao reviver sua temática atualíssima de infância e
marginalidade social, é como se tudo voltasse.
No contato renovado do
velho trapiche, na brancura enluarada do areal baiano, retemperei a emoção da
inconformidade diante das iniqüidades sociais. Agradecemos a Jorge Amado o
escritor do encanto de todas as gerações, da Bahia de todos os santos e de
quase todos os pecados por espírito e consciência com a prosa madura de seus
vinte e cinco anos, já então bem vividos de travessias e de travessuras.
Não nos iludamos com a
maciez dessa prosa. Ela bem se forjou, na mistura baiana dos condimentos
intelectuais e populares. Nos sobradões do Pelourinho, botecos das Sete Portas
e sarapatéis da meia-noite em Água dos Meninos; na insubmissão literária da
Academia dos Rebeldes e nas casas proibidas das "meninas" alegres;
nos prelos democráticos do Diário da Bahia e iiii; nos candomblés de Procópio e
Aninha, Camafeu e Menininha; no convívio igual dos trabalhadores do cacau em
Sequeira do Espinho; nos saveiros viajando para Cachoeira e Porto Seguro.
É dessa prosa forte,
cor e coração, dor e odor de povo, que nos vêm: O pais do carnaval, Cacau,
Suor, Jubiabá, Mar morto e, enfim, Capitães de Areia. Anunciava-se e apurava-se
o mestre.
O breviário marxista
prevê a existência de duas nações em cada nação; duas culturas nacionais em
cada cultura nacional. A cultura burguesa, tradicional, clerical e elitista,
com seus elementos atuando de forma dominante/dominadora. E a cultura popular,
democrática e socialista, cujos elementos - sementes ideológicas - provêm da
classe trabalhadora e dominada.
No Brasil - para
Sílvio Romero - essa dicotomia cultural equaciona-se de forma peculiar,
refletindo as condições e contradições de nossa sociedade. Não chegaríamos,
pela ausência de conflito revolucionário, a falar de uma simbiose perfeita.
Sincretismo - fenômeno e solução bem ao jeito brasileiro - é, talvez, melhor
explicação. Mas o fato é que a dualidade virou convivência assimilada e
cultivada.
Jorge Amado seria a
própria tese demonstrada. É tal qual Pedro Arcanjo, de Tenda dos milagres,
conciliando fé e ideologia, religião e ceticismo, candomblé e militância
política. Híbrido de Apolo e Dionísio.
Em Capitães da Areia,
a duplicidade é manifesta.
O começo diz tudo.
O prólogo é síntese
dialética de tema e texto, autor e obra. As "cartas à redação" já
mostram a sociedade desigual, opondo ricos e pobres, opressores e oprimidos,
consentidos e rejeitados. O painel introdutório, costurado com ironia, retrata
o desprezo e a insensibilidade oficiais com a pobreza sem vez e voz. Acentua a
cumplicidade autoprotetora dos poderosos, constantes no irmamento que reprime e
pune a marginalidade humilhada.
No centro do quadro, o
encontro do pequeno Raul, neto de comendador, e Pedro Bala, líder dos capitães
de areia.
Espontânea empatia
infanto-juvenil nasce entre o chefe da gangue e a "linda criança de onze
anos". O autor se deixa revelar na consentida duplicidade existencial e
literária. Não é gratuito o simbolismo de ser Raul "dos ginasianos mais
aplicados do Colégio Antônio Vieira", afamado internato jesuíta de
Salvador, tal qual fora, com a mesma idade, o próprio Jorge Amado.
O diálogo entre as
crianças, reproduzido pela ingênua fidelidade de Raul, é ainda mais revelador:
- Ele disse que eu era
um tolo e não sabia o que era brincar.
Eu respondi que tinha
bicicleta e muito brinquedo. Ele riu e disse que tinha a rua e o cais. Fiquei
gostando dele, parece desses meninos de cinema que fogem de casa para passar
aventuras.
Pedro Bala e seus
capitães de areia tinham a liberdade estrelada das noites, um mundo mais amplo
e riqueza maior que a bicicleta do menino rico. Em seus quinze anos, dez deles
vividos na orfandade e no aprendizado dos becos e ladeiras, Bala, livre e
líder, era só superioridade.
Essa sensação
contrafeita de segurança e independência, o amadurecimento precipitado pela
ânsia de sobreviver, a consciência narcisista de donos de si mesmos, somam-se
ao sentimento de revolta intransitiva e à natural agressividade adolescente,
para formar o perfil dos capitães de areia.
Engana-se quem imagina
haver completa satisfação nessa condição marginal. No íntimo, sobrepondo-se aos
vícios e contravenções, persiste a ingenuidade doce, a inocência mansa do ser
criança. E, no texto, a prova comovente é a alegria natural com que os
"terríveis delinqüentes" se reencontram nas brincadeiras do carrossel
de Sem-Pernas e Volta-Seca.
À noite, entretanto,
na solidão cansada do trapiche, virão, como sempre, as cicatrizes, os medos, os
vazios. E também os desejos. Todos, certamente, iguais aos sonhos simples do
Sem-Pernas.
E Jorge Amado nos
conta:
"O que o
Sem-Pernas quer mesmo é felicidade, alegria, fugir de toda aquela miséria que
os cerca e estrangula. Há, é verdade, a grande liberdade das ruas. Mas há,
também, o abandono de qualquer carinho, a falta de todas as palavras boas. Ele
não quer o refúgio confuso do misticismo, como o anêmico Pirulito. Quer coisa
imediata, que ponha seu rosto sorridente e alegre. Que o livre também daquela
angústia, daquela vontade de chorar nas noites de inverno. Quer alegria, mão
que acaricie, alguém que o faço esquecer o defeito físico e os muitos anos que
viveu sozinho nas ruas da cidade, hostilizado pelos passantes, empurrado pelos
guardas, surrado pelos moleques maiores." A confidência solitária de um é
o apelo mudo e dramático de todos. Dos capitães de areia ou do asfalto; dos
"filhinhos pobres de Omolu" e dos pixotes, trombadinhas e pivetes.
Daqueles que, violentados na infância e juventude, se agrupam hoje,
tristemente, sob a rubrica técnica/tecnocrática de "problemática do menor
abandonado". Personagens da mesma tragédia urbana.
E na confidência e no
apelo, a denúncia implacável.
Denúncia contra o
despreparo oficial que consente na eternização do problema. Censura explícita à
sociedade, que tem preferido ignorar a questão social do menor brasileiro,
lembrando-se dela apenas quando se assusta com o noticiário de assaltos, fugas
e revoltas nos internatos institucionais - versões modernizadas, e nem por isso
mais sensíveis, do cínico e opressivo reformatório do livro. É nessas horas de
susto que surgem sempre os truculentos de plantão, exigindo corretivos
policialescos.
E as causas nada têm
de glamurosas e cinematográficas, como inocentemente imaginou o pequeno Raul.
São muito mais fundas, dolorosas e persistentes. Transcendem até mesmo a reação
de Jorge Amado. A arte aquém da vida.
Onde estão as causas
primeiras e verdadeiras desse drama continuado?
De onde vêm essas
crianças? Os Pedro-Balas, Gatos, Pirulitos e Sem-Pernas que encontramos nas
ruas da cidade?
Existem, em nosso
país, 55 milhões de menores de 0 a l7 anos e mais de 60% - 32 milhões - provêm
de famílias com renda mensal igual ou inferior a dois salários mínimos. São as
famílias de baixa renda, que não dispõem de recursos suficientes para
sobrevivência digna, de quase nula participação no mercado de consumo de bens
materiais e culturais e de acesso precário aos serviços de saúde, educação,
habitação, lazer.
Esses 35 milhões de
andarilhos da miséria, aos quais as estatísticas negam até mesmo o nome de
crianças, são as vítimas do abandono e da desesperança; do analfabetismo e da
desnutrição que reduz peso, altura e perímetro cefálico, comprometendo-lhes,
irreversivelmente, o desenvolvimento intelectual. O drama é amplo. Não se limita
ao simbólico trapiche do cais de Salvador. Desdobra-se em múltiplos planos e
seqüências da realidade brasileira.
- Mais de 60% de
nossas crianças já começam a ficar desnutridas e, portanto, física e
mentalmente vulneradas, no próprio ventre materno. A inferioridade orgânica e
intelectual precede e condiciona a social.
- A mortalidade
infantil no país ainda está em torno de cem mortos para cada grupo de mil
nascidos vivos, chegando a ultrapassar duzentos por mil em várias regiões do
Norte e Nordeste.
- Mal de Chagas,
tracoma, tuberculose, tétano, sarampo e poliomielite dizimam consideráveis
contingentes de crianças. Não têm a brandura solidária de Omulu, a deusa da
bexiga, que reduzira os efeitos da doença para não matar "seus filhinhos
pobres", desprotegidos de vacina.
- Mais de 7 milhões de
crianças de 7 a 14 anos estão fora da escola. Das que ingressam no sistema
regular de ensino apenas 20% chegam à 4a série do 1o grau, 47% são logo
reprovadas na primeira série e muitas abandonam a escola e regridem ao
analfabetismo. A repetência e evasão, quando não decorrem do comprometimento
mental causado pela desnutrição, são provocadas pela necessidade de
sobrevivência familiar que obriga a criança, com menos de 10 anos, a procurar
ganho e ocupação.
- João José, o
Professor, respeitado mentor intelectual dos capitães de areia, "só
estivera na escola ano e meio".
- Temos cerca de 12
milhões de excepcionais - deficientes mentais e/ou físicos - dos quais 80% são
menores. Nove milhões de Sem-Pernas e Joões Grandes.
- Pode-se mencionar,
também, a tragédia das crianças dos seringais acreanos e amazonenses que, com 5
anos, já laceradas pela lepra e afastadas da vida comunitária, esmolam
desamparadas pelos caminhos e trilhas da região.
Aprofundando a
questão, defrontamo-nos, por exemplo, com a dolorosa situação das crianças da
zona canavieira, em Pernambuco, minuciosamente estudada, na década de 70, pelo
Professor Nélson Chaves, cientista mais que respeitado internacionalmente. Ele
nos mostra como funciona o círculo vicioso da desnutrição. As mulheres da
região - que têm hoje uma estatura média de l,50 m, praticamente a mesma dos
pigmeus africanos - sofrem de hipoplasia mamária (deficiência grandular
provocada pela fome) e não produzem quantidade normal de leite. Assim,
subnutrida, não pode alimentar adequadamente o filho recém-nascido. E este, se
consegue sobreviver, vai crescer física e mentalmente inferiorizado, sem
condições de gerar filhos sadios. É de Nélson Chaves o alerta de que,
permanecendo tais condições de fome endêmica, subalimentação e miséria
absoluta, que não são exclusivas de certo espaço pernambucano, teremos, em
futuro próximo, uma geração brasileira de nanicos, anêmicos, raquíticos e
debilitados mentais.
Já se pode, dessa
forma e com tais informações, começar a perceber de onde vêm e como surgem as
crianças abandonadas - versões não literárias dos capitães de areia - que erram
pelas ruas, assustando a insensibilidade alienada da sociedade estabelecida.
Elas vêm da Zona da
Mata pernambucana e dos seringais da Amazônia. Vêm das maltratadas regiões do
Norte, Nordeste e do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Vêm evadidas das
escolas. Dos escuros e miseráveis guetos urbanos. Indesejadas, escorraçadas,
surgem de todos os lugares, gritando a sua trágica condição. São o produto
final e doloroso de uma omissão generalizada e acumulada. O resultado cruel de
uma criminosa indiferença social.
Capitães de areia faz
cinqüenta anos. Muitas análises asseguram que as causas verdadeiras do problema
do menor se encontram, paradoxalmente, na convivência insólita do
desenvolvimento e subdesenvolvimento. A chamada teratologia do progresso; o
choque súbito do desenvolvimento acelerado e não-planejado.
Nas origens da
questão, há fatores típicos de países vivendo a ânsia do desenvolvimento, como
industrialização, urbanização desmedida, êxodo rural e desequilíbrio do sistema
produtivo.
Convivem com variáveis
próprias de países subdesenvolvidos: precária infra-estrutura médico-sanitária,
analfabetismo e evasão escolar, explosão demográfica, baixa qualificação de
mão-de-obra, renda per capita insuficiente, pobreza, miséria.
Todos esses fatores influem, em maior ou menor
grau, no dimensionamento sócio-econômico do problema.
As migrações rurais e
o crescimento demográfico são conhecidos exemplos brasileiros.
Conseqüência da
urbanização crescente e desordenada e da incapacidade produtiva nas regiões de
origem, onde subsiste uma estrutura fundiária injusta e anacrônica, as
migrações rurais, nos eixos Norte-Sul, interior-metrópole, ampliam
desequilíbrios sociais e realimentam a questão do menor carente.
As cidades - meta e
mito da ilusão migratória - não têm condição de absorver a diáspora rural.
Tornam-se impotentes ante a demanda crescente de saneamento, educação e
habitação do vasto cinturão de pobreza, instalado em sua periferia, sob a forma
subumana de favelas, mocambos e invasões.
Já o crescimento
demográfico descomedido pode assumir proporções catastróficas. O país conviveu,
na década passada, com uma taxa de 2,48 por ano, ou seja, um incremento da
natalidade de 33%, de 1970 a 1980, resultado incompatível com o padrão médio
das nações adiantadas. O pior é que essa natalidade é inversamente proporcional
à renda familiar. Nascem muito mais crianças nas classes desfavorecidas do que
nos estratos economicamente privilegiados.
São os estigmatizados
pela miséria, desagregadora da família e que sujeita as crianças à rejeição, à
marginalidade.
Essa a raiz profunda
do problema do menor, qualquer que seja seu batismo adjetivo: carente,
abandonado, marginalizado, infrator, delinqüente, capitães de areia ou do
asfalto.
A pergunta que se faz
é até quando vai perdurar tal situação de desamor e espoliação.
Afinal, é cômodo
culpar governos, mesmo quando, solidários, esforçados e às vezes confusos em
seus bons propósitos, tentam remediar a questão, herdada e multiplicada por
gerações.
Mas culpar governos;
transferir remorsos e responsabilidade às vezes serve apenas para arejar
consciências inquietas, como ensinava Machado de Assis. A solução, porém, não
passa por aí: pela passividade contemplativa ou pela caridade isolada e
autocompensatória.
Voltemos ao livro para
lembrar o diálogo ressentido entre Pedro Bala e Sem-Pernas, numa igreja da
Piedade, onde reencontram o místico Pirulito, compensando-se com fervor
religioso, a ensinar catecismo aos meninos pobres. Quando Sem-Pernas, de dentro
de sua desesperança afirma, que "Bondade não basta. Só o ódio...",
Pedro Bala, já com o gosto e o jeito revolucionários nascentes, retruca: "Nem
o ódio, nem a bondade. Só a luta."
Também não é por aí
que passa a solução do problema do menor; ou de qualquer drama social. Não é
pelo radical ardor do combate, nem pelo confronto de classes que encontraremos
o remédio definitivo e a cura desejada. A questão ultrapassa ideologias e
proselitismos. Vai além de filosofias e doutrinas.
A solução passa pelo
íntimo consciente de cada um e se reflete na psicologia do comportamento
social. Ela está na mudança coletiva de atitudes e sentimentos. Na troca da
indiferença inerte pela participação; da insensibilidade pela mobilização
construtiva. Ela se encontra na certeza de que podemos mudar. A começar de nós
mesmos.
Capitães de areia faz
cinqüenta anos. A lira é triste, pois o drama permanece. De nós depende o
futuro.
Que Capitães de areia
faça sessenta, setenta, cem anos e que a lembrança seja apenas literária - a
riqueza da obra - e não a dolorosa persistência do tema social.
De nós depende não
permitir que o canto continue elegia. Vire canto de redenção, seja como a Canção
Amiga, de Drummond.
Acorde os homens e
adormeça as crianças, na paz de um mundo justo e igual. Com a bênção benfazeja
de Jorge Amado, Obá da Bahia.
(Intenção e gesto,
1989)
*
Advogado, jornalista, professor, ensaísta e poeta, membro da Academia
Brasileira de Letras.
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