A velha jabuticabeira
* Por
Maria Eugênia Amaral
Ela foi totalmente
serrada. Não sobrou um único pedaço visível. Era uma bela e frondosa
jabuticabeira que florescia dando frutos doces como o mel e que um dia, já
velha, foi substituída por um muro. Algumas fileiras de tijolos, cimento,
reboco... Um muro frio e seco.
Argamassa no lugar de
polpas saborosas e suculentas. Que troca! Mas as linhas retas de demarcação de
propriedade eram mais importantes que uma tortuosa senhora jabuticabeira. E
ela, sem conhecer os limites dos homens, vicejara exatamente na divisa de
propriedades vizinhas. Pagou caro: foi ceifada, sem piedade.
Os anos se passaram e
as posses mudaram de mãos, de escrituras, de controle. Os meninos que haviam se
fartado de comer jabuticabas, cresceram, tiveram filhos, tornaram-se
respeitáveis proprietários. E o muro envelheceu.
No mesmo lote sobraram
duas outras jabuticabeiras que, ao acaso, haviam nascido longe dos limites
murados. Estas foram poupadas. E cresceram. Mas seus frutos não eram bons, não
tinham sabor. Estavam sempre bichados e pareciam cheios de areia. Apesar de
produzirem jabuticabas imprestáveis, as árvores, viçosas, foram mantidas no
jardim do novo prédio. Eram esteticamente interessantes, convenientemente
decorativas, e isso bastava. Ninguém se incomodava com seus frutos intragáveis.
Ninguém mais comia jabuticaba no pé.
As jabuticabeiras são
árvores leves que adoram balançar seus ramos finos, rendados por inúmeras
folhas miúdas. São seres alegres e dançantes. Não perdem um só acorde do vento
e rapidamente sacodem suas cabeleiras verdes.
Muito práticas,
desenvolveram flores e frutos que vicejam firmemente agarrados a seus troncos.
Evolutivamente, se adaptaram para serem dançarinas sem derrubar nenhuma flor.
Bailam e saracoteiam seus finos braços e a densa copa sem perder um único
fruto. São sábias, pois do jeito que balançam e sacodem, se fossem mangueiras
derrubariam todas as mangas ainda verdes, filhotinhas. Mas são jabuticabeiras:
membros da “minha” família botânica, a das Mirtáceas, que inclui as
pitangueiras. (Saiba que eu e outras Eugênias somos seus parentes próximos.
Tenho orgulho em tê-las como primas!)
Um dia, sem alarde,
aquele velho muro começou a descascar. Foi rebocado, retocado, pintado. Não se
passou uma semana e já estava pedindo reparos novamente. Vieram o síndico e o
jardineiro, olharam, mexeram, conversaram e decretaram: “Trabalho malfeito!”.
O pedreiro foi chamado
e obrigado a repetir a obra, apesar de ter posto a culpa no cimento de má
qualidade que o síndico havia comprado. A situação se repetiu. Veio o
engenheiro e examinou: não era umidade nem infiltração. E o muro descascava
novamente, sem ninguém saber por quê.
Fizeram uma reunião do
condomínio e o assunto principal foi o muro. Resolveram cobri-lo com hera. Mas
a trepadeira não vingou. Nos locais em que as gavinhas aderiam, o reboco se
desprendia. Por puro cansaço, o muro caiu no esquecimento. Todos passaram a
evitar aquela parte do jardim.
E chegou a Páscoa. Na
busca por ovos de chocolate, as crianças vasculhavam todo o pátio do prédio.
Mas não encontraram seus presentes comprados pelos pais. Encontraram
jabuticabas, grandes e suculentas, saborosas, sem bichos e sem gosto de areia.
Eram centenas delas, aderidas a uma jovem e forte jabuticabeira que arrebentara
o muro e renascera.
Há pessoas que são
como essa jabuticabeira: têm a capacidade de romper couraças e renascer. E
quando estão presentes influenciam as demais pessoas com sua doçura e sua
força. E eu, que hoje sou um rebroto de pitanga, quero ser uma árvore quando
crescer. Não sei se darei bons frutos, mas garanto que vou dançar sempre que puder.
*
Escritora
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