Racismo na universidade
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Carecem de
inteligência os autores dos comentários racistas postados na página UFSC do
facebook? Ou são apenas pitibulzinhos desinformados e malformados? Fiquei
curioso em saber quem são esses jovens alunos da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) que debocharam de seus colegas indígenas. Onde cursaram o
ensino médio? Como conseguiram passar no vestibular? Com quais professores
tiveram aulas, que disciplinas cursaram, o que lhes foi ensinado ou deixado de
ensinar? Quais os valores que circulam em suas famílias e o que conversam
dentro de casa?
A página, que leva o
nome da UFSC, não pertence à instituição, mas seus integrantes sim, são alunos
desta universidade a qual envergonham. Esses pobres coitados, que já haviam
publicado foto ofensiva a colegas negros, estão agora incomodados com a presença
dos índios no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata
Atlântica que formou, em 2015, mais de 120 índios Guarani, Kaingang e Xokleng
Laklãnõ, em quatro áreas: Infância, Conhecimento e Gestão Ambiental,
Humanidades (Direitos Indígenas) e Linguagens (línguas indígenas).
O curso intercultural
permitiu a confraternização de índios com os demais colegas no ambiente
universitário. Foi isso o que eu vi quando dei aulas de literatura brasileira,
em 2013 e 2014, para 36 alunos indígenas de Linguagens. Não vi no campus da
UFSC, em Florianópolis, os racistas, que não colocaram as unhas de fora. Só vi
índios e não índios trocando saberes e informação, convivendo nos corredores,
na biblioteca, na cantina, nos laboratórios. Imagino que os universitários
inteligentes, que sabem da importância dos índios, estão escandalizados com a
conduta da minoria truculenta, composta de indivíduos que têm perfil para ser
candidato a presidente dos Estados Unidos pelo Partido Republicano. São
projetinhos grotesco do grotesco Donald Trump.
Pesquisas de índios
Os comentários no
facebook revelam preconceito e precariedade de estudos dos seus autores. Sobre
o Curso Intercultural Indígena, um deles pergunta: "Essa licenciatura aí
também serve pra caçar capivara sem ser multado pelo IBAMA?". Um tal de
Alexandre, que se acha engraçadinho, responde: "Não tem dança da chuva,
não serve pra nada". Um terceiro pergunta: "Onde eles fazem estágio?
Depenando aves que gostam de melancia? Em qual fase do curso aprende a fazer
oncinha pra vender no centro?".
Tais comentários são
complementados por outros três que nos fazem pensar no velho ditado: diz-me de
quem ris e como ris, e eu te direi quem és. O primeiro justifica: "para
preservar o senso de camaradagem e bom humor, deixo aqui umas piadas de
índio". O segundo, demonstrando um refinamento inusitado, dá um berro em
letras garrafais: "aaaaaa aaaaaaaaaa aaaaaaaaaa uhuauheuaheu, caralho mano
eu ri demais com essa porra". Um tal de Vinicius insiste: "Qual a
área de atuação, é plantar mandioca?".
Justamente a
agricultura tradicional guarani foi o tema do trabalho de conclusão de curso
(TCC) de Karai Dju (Ronaldo Barbosa), de cuja banca de avaliação tive a honra
de participar, assim como avaliei as monografias de Karai Okenda (Geraldo Moreira)
e Karai Ivyju Miri (Wanderley Moreira) que trouxeram os saberes de astronomia e
um mapa do céu guarani com estrelas e constelações. Aprendi muito com os três.
Os estudantes racistas
são capazes de fazer pesquisas com a qualidade apresentada pelos índios?
Duvido. Deudu,veivi,deodó, macaxeira mocotó. Li com lupa crítica as monografias
citadas que se complementam como se fossem capítulos de um livro. Os Guarani
para verem a terra, olham o céu. Com a leitura do céu, elaboram o calendário
cosmológico chamado Apyka Miri, que conta o tempo, marca o clima, a chegada da
chuva, a época de extrair o mel e de semear, o tempo da colheita e de fazer
artesanato, a duração das marés, a caça e a pesca.
A semente e os frutos
As monografias dos
índios trouxeram imagens registradas com diferentes técnicas, incluindo desde
desenhos coloridos feitos manualmente pelos autores, passando por fotos das
roças e das pessoas entrevistadas até o mapeamento das aldeias com imagens de
satélite do Google Earth. No final, a projeção do vídeo sobre o tema reforçou a
relação da agricultura com o mundo espiritual guarani, destacando o ritual do
Nhemongaraí, quando se dá o benzimento de sementes e de alimentos junto com o
batismo das crianças.
- Nos dias atuais a
agricultura tradicional guarani é como se fosse uma agricultura orgânica ou
biológica dos não indígenas porque não usa nenhum tipo de adubo químico -
escreveu Ronaldo, que chama a atenção para "as armadilhas" do
mercado. "De alguma maneira hoje devemos controlar o que vem de fora para
não afetar diretamente a nossa produção, a nossa cultura" - ele diz,
apontando como lugares de luta a escola indígena e "a Casa de Reza (Opy),
que é a nossa primeira escola".
As monografias estão
comprovando que os índios são capazes de se apropriar dos métodos da academia
para produzir conhecimento, mas sobretudo que eles trazem relevante
contribuição para que a universidade aprenda como pensam os índios. Ronaldo,
que antes se formou como técnico em agropecuária no Colégio Agrícola de
Araquari (SC), diz que ele tem hoje a visão de dois mundos e pode transitar por
ambos: "Dessa forma está sendo plantada uma semente onde vamos poder
colher bons frutos".
São esses frutos que o
projeto Encontro de Saberes pretende colher, como explicou José Jorge de
Carvalho, professor da Universidade de Brasília (UnB), em encontro do qual
participei na última semana na Universidade Federal Fluminense. Trata-se de
projeto do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia com a UnB e o CNPq que
pretende contribuir para descolonizar o modelo de conhecimento de nossas
universidades e trazer para dentro delas os saberes tradicionais.
Carta de repúdio
Quem mais ganhou com a
entrada de estudantes indígenas na universidade foi a própria UFSC, mas isso
não é do conhecimento dos seus colegas racistas que criaram um ambiente
destinado a questionar a existência da Licenciatura Intercultural Indígena, o
que foi feito recentemente pelo membro discente do Conselho Universitário, um
aluno do curso de medicina, para quem tal Licenciatura fere a Constituição.
Por isso, os
estudantes indígenas escreveram carta no dia 30 último repudiando a atitude
racista que vem acontecendo de forma explícita e velada. A carta cobra da UFSC
uma posição clara contra os comentários racistas que incitam o ódio, o que é
crime previsto no art. 286 do Código Penal. Não se pode confundir "o
direito de liberdade de expressão com incitação ao ódio" - diz o
documento, que reafirma a posição de luta e denuncia que "os novos
calouros desse ano, sem mesmo efetuar a matrícula presencial já sentem na pele
o que está por vir".
P.S. Ver matéria feita
por Elaine Tavares "A Cultura do ódio contra indígenas de expressa na
UFSC"(31/01/2016)
*
Jornalista e historiador
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