quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Quem vai cuidar de mim?


* Por Mara Narciso


Fomos dormir num país em 2014 e acordamos noutro em 2015. Não, nós não estamos tão bem quanto nos fizeram acreditar. Ainda assim, já andamos muito, desde a Lei Sexagenária, quando os escravos de 60 anos eram largados à própria sorte. Em 1888 os funcionários dos Correios tiveram direito a se aposentar. Em 1923 foram criadas as primeiras caixas de aposentadorias e pensões. A aposentadoria para trabalhadores urbanos e rurais se unificou em 1963, surgindo o INPS – Instituto Nacional de Previdência Social, tornado INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social em 1990. Quem atingiu a idade ou o tempo de contribuição deverá se aposentar e receber o mesmo de quando estava na ativa. Muitos erros aconteceram junto às fraudes nessa nossa “Pátria mãe tão distraída”, e parte de quem deveria receber está fora e alguns que não deveriam estão dentro. Os recursos arrancados das quatro fontes, patrão, empregado, trabalhador e Governo, se perdem diariamente, e há décadas, faltam verbas para a manutenção do serviço.

O tempo de vida aumentou, o INSS faliu e para equilibrar as contas são necessários quatro trabalhadores contribuindo para cada aposentado e estamos quase com um para um. Foram cortadas algumas aposentadorias anômalas. Muita gente trabalhou na informalidade, sem contribuição, especialmente na área rural. Valores foram desviados da Previdência para outros fins. Contas em altas matemáticas são feitas, e a cada dia o aposentado, cujo benefício acima do Salário Mínimo não está atrelado àquele, recebe menos, tendo uma velhice envergonhada. O idoso não consegue cuidar da sua aparência, dar manutenção à sua casa e substituir seus pertences. O padrão de vida encosta-se no chão. A idade de se aposentar se eleva a cada dia, por motivos óbvios. Se antes professoras, militares e bancários se aposentavam aos 43 anos, hoje é preciso chegar aos 65 anos para se aposentar. Dependendo da função, trabalhar nessa idade é impossível.

Posso até contribuir para o debate, mas quero mesmo é fazer meu despudorado lamento em praça pública. Sou médica há 36 anos e jornalista há quase seis. Para me formar endocrinologista, estudei um ano inteiro com dedicação exclusiva para a prova do vestibular. Entrei na Famed, hoje Unimontes em 4º lugar. Depois de seis anos de curso, meu currículo foi o 5º entre 44 pessoas (lá havia primeiro lugar, mas não tive competência para atingi-lo). Foram três anos de Residência Médica em Belo Horizonte, na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte dia e noite. Com Titulo de Especialista reconhecido nacionalmente, trabalho em consultório 8 horas por dia desde janeiro de 1984. Houve dias de trabalho dobrado, 16 horas por dia, em plantões atendendo emergências em diabetes na Santa Casa de Caridade de Montes Claros, quase todas via SUS, o que fiz durante dez anos.

Paguei o INSS durante 30 anos, sendo mais da metade do tempo sobre o teto máximo, pois se tornou obrigatório aos médicos. Aposentei-me há três anos e recebo R$2.400,00. Como continuo trabalhando, pago, em valor de hoje, R$580,00 ao INSS, mensalmente. Isso é descontado em uma das minhas três fontes pagadoras, autorizada por mim. Muitas vezes, nesses 36 anos, foram descontados indevidamente a mesma quantidade em outras fontes. Não consegui reaver esses valores.

De cada R$100,00 que ganho, R$27,50 vão para o Imposto de Renda. As despesas trabalhistas são altíssimas. O Salário Mínimo de R$880,00 é pouco para se receber, mas é caríssimo para se pagar. Manter as atividades num consultório com condomínio, secretária e todas as taxas exigidas como CRM – Conselho Regional de Saúde, AMMG – Associação Médica de Minas Gerais, SBE – Sociedade Brasileira de Endocrinologia, ISS - Imposto Sobre Serviço, IM – Impostos Municipais, Vigilância Sanitária (vistoria anual de balança e ar-condicionado, R$250,00 cada item), resíduos sólidos e IPTU está tornando inviável a prática médica. Troco figurinha, já que a maioria dos convênios médicos paga em média R$60,00 por consulta, meses depois. É impossível saber o que pagam. Não temos contracheque e no que é depositado vêm descontadas taxas nem sempre claras. Entre os endocrinologistas da minha cidade, o preço da consulta particular, rara, varia de R$180,00 a R$400,00. O glamour e o imaginado status de médico ficaram pelo caminho. Aos não vocacionados, que pensam ficar ricos, que arrumem um bom emprego e o mantenham, pois o mundo real é diferente do idealizado.

Tenho saúde frágil. Fui inábil para conseguir um emprego, fazer previdência privada e reservas. Ninguém tem culpa disso, exceto eu mesma. É apenas o meu caso, mas outros passam pelo mesmo problema: velhice desassistida. Enquanto produzo, me arrancam tudo. E quando eu não puder mais, quem vai cuidar de mim?

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



5 comentários:

  1. Seu caso é um tanto parecido com o meu, Mara. Por quase 30 anos, recolhi contribuição sobre o teto de então, de vinte salários mínimos. Pouco antes de me aposentar, o teto baixou para a metade, para dez salários mínimos. Quando me aposentei, porém, não sei por qual sortilégio, minha aposentadoria foi fixada no equivalente a míseros três salários mínimos e meio. Esteve muito distante, portanto, da proporcionalidade do recolhimento. Não precisa ser nenhum gênio para constatar tremenda injustiça. Depois de aposentado, trabalhei mais quase vinte anos, sempre recolhendo, até completar setenta anos de idade. Como na oportunidade eu estava no serviço público, a legislação forçou-me a parar. E esse recolhimento todo, de duas décadas, para onde foi? Para o espaço? Nossa aposentadoria seria, pois, cômica, se não fosse trágica. Parabéns por trazer o tema à baila, Mara. Creio que isso deveria ser discutido pela sociedade. Se a Previdência está “falida”, não é por nossa culpa, ora bolas. Nós é que somos vítimas. Ou não?

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    1. Em pouco tempo, independente sobre quanto se recolheu o destino será igual para todos: receber um salário mínimo. Criticaram-me pela ousadia de levar a público que, como aposentada, recebo apenas isso. Vergonha deveria ter quem recebeu o meu dinheiro e o administrou tão mal. Lamento aqui o segundo dinheiro que recolheram e não o reencaminharam para você. O mesmo que se dá comigo no momento. Discutirão por agora a Reforma na Previdência. Não será sobre como administrar melhor e dar destinação correta ao nosso dinheiro e sim como extrair mais do trabalhador e pagar menos por um tempo ainda menor. A desculpa será sempre a mesma: gente vivendo demais.Obrigada pelos acréscimos, Pedro.

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  2. Seu caso é um tanto parecido com o meu, Mara. Por quase 30 anos, recolhi contribuição sobre o teto de então, de vinte salários mínimos. Pouco antes de me aposentar, o teto baixou para a metade, para dez salários mínimos. Quando me aposentei, porém, não sei por qual sortilégio, minha aposentadoria foi fixada no equivalente a míseros três salários mínimos e meio. Esteve muito distante, portanto, da proporcionalidade do recolhimento. Não precisa ser nenhum gênio para constatar tremenda injustiça. Depois de aposentado, trabalhei mais quase vinte anos, sempre recolhendo, até completar setenta anos de idade. Como na oportunidade eu estava no serviço público, a legislação forçou-me a parar. E esse recolhimento todo, de duas décadas, para onde foi? Para o espaço? Nossa aposentadoria seria, pois, cômica, se não fosse trágica. Parabéns por trazer o tema à baila, Mara. Creio que isso deveria ser discutido pela sociedade. Se a Previdência está “falida”, não é por nossa culpa, ora bolas. Nós é que somos vítimas. Ou não?

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  3. O quadro é perverso, o sistema previdenciário está carcomido e insustentável, as aposentadorias são injustas. Vontade de mudar para a Suíça, a Noruega ou a Alemanha, Mara... Um abraço.

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    1. O dinheiro nunca dará para seu fim correto e outras destinações, desde sempre. Temos de educar melhor nossos filhos. Obrigada pela solidariedade, Marcelo.

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