Maravalhas: o fado no Amazonas
* Por
José Ribamar Bessa Freire
“Este
meu Porto tripeiro
berço
de tantos heróis
viu
uma nesga do rio
e
quis o resto depois".
Fado cantado por Maravalhas (1927-2016)
Desocupado leitor, eis
aqui a saga heroica de um tripeiro que salvou um bucheiro, uma criança que se
afogava no rio Negro, mergulhando em suas águas profundas, com risco da própria
vida. Bucheiro, em "amazonês", é quem nasce em São Raimundo, bairro
que sedia o Matadouro Municipal de Manaus. Tripeiro designa, em
"portoguês", os nativos da região do Porto, norte de Portugal - berço
de tantos heróis entre os quais D. Henrique, o Infante Navegador e José
Fernandes Gomes Novo, o Maravalhas, cuja missa de sétimo dia foi celebrada
nesta quinta-feira (18).
O nosso herói nasceu
em Póvoa de Varzim, mas viveu ali pertinho, no Porto, onde bebia vinho e comia
tripa de vitela com chouriço e toucinho. Até que um dia, em 1946, cruzou a
Ponte das Barcas que liga as duas margens do rio Douro, pegou um navio e mudou
de mala e cuia para Manaus. Trazia na bagagem seus 19 anos, uma bela voz de
cantor de fados e o apelido com vários significados - apara de madeira, cavaco,
pau pequeno - mas o nome Maravalhas - acreditem - se inspirou na lasca da
madeira serrada na carpintaria onde trabalhou ainda menino, o que descarta
qualquer especulação maledicente.
Marias Papoilas
Há outra versão. O
apelido - diz seu compadre José Campos - é antigo e tradicional, vem de longe,
da família, o que é confirmado na tese "Imprensa, Política e Etnicidade:
portugueses letrados na Amazônia (1885-1936)" defendida por Geraldo Sá
Peixoto Pinheiro na Universidade do Porto, em 2011. A tese reproduz carta ao
etnógrafo Geraldo de Macedo Pinheiro de 1º de julho de 1958 enviada pelo poeta
poveiro Admário Maravalhas, mencionando Antônio Maravalhas e outros pescadores
e catraieiros poveiros que migraram para Manaus muito antes, em 1888.
Conheci o nosso
Maravalhas no bairro de Aparecida, palco de tudo o que aconteceu no mundo ou
ainda vai acontecer. Ele morava na Bandeira Branca e trabalhava com o pai,
responsável pela atracação dos navios no Ródo, o porto de Manaus. Quando o navio
apitava, os dois iam ao seu encontro, o amarravam a um motor com um cabo de
aço, rebocando-o até o cais. No fim de semana, porém, Maravalhas era poeta,
cantor e artista. Cantava fados na Rádio Baré e no Luso Sporting Club, do qual
foi diretor, e onde disputava o título de melhor ator com João Bosco Araújo, o
cão do Luso.
O sucesso como fadista
gerou convites de outros clubes: Olímpico, Ideal, Rio Negro, Sheik, Maloca dos
Barés e do grupo de danças folclóricas lusas do comandante Ventura, que se apresentou
no Teatro Amazonas com as marias papoilas - Regina, Helena, Angela e Stella -
as filhas da mãe, que por acaso compartilham comigo a mesma genitora, dona
Elisa. Elas dançavam e cantavam com Fátima Buchinho, Neide Toscano, Mário
Toledo e outros. Gina se lembra como se fosse hoje o Maravalhas cantando
Marinheiro português:
-
Lá vão elas
naus
do infante a navegar
Brilha
a luz das caravelas
Sobre
as ondas do mar.
Solidariedade tripal
- Durante a semana, Maravalhas era trabalhador
braçal, mas aos domingos, quando não jogava futebol pelo Olímpico, vestia terno
de linho branco, gravata e chapéu panamá e ia passear no Ródo, o shopping da
época - conta o ex-prefeito de Manaus, Serafim Corrêa (PSB). Foi justamente num
desses passeios na companhia do pintor Moacir Andrade, também morador de
Aparecida, que Maravalhas mostrou seu heroísmo numa tarde quente do ano de mil
novecentos e cinquenta e lá vai poeira.
Nesse dia, os irmãos
Pedro, Paulo e Kid Queiroz flanavam pelo Ródo com família e amigos bucheiros
para comemorar a primeira comunhão de várias crianças, quando uma delas -
Jurandir ou Irandir - escorregou, caiu na água e desapareceu. Todo mundo gritou
diante da iminente tragédia e, de repente, o tripeiro Maravalhas, honrando a
tradição heroica de além-mar, num gesto generoso de solidariedade tripal, pulou
no rio com chapéu e tudo, mergulhou e resgatou o bucheirinho são e salvo.
Trouxe-o nos braços e quando vinha subindo a escada lateral, o pintor Moacir
puxou um coro:
- Viva Maravalhas, o
nosso herói!
Um herói ensopado, com
o terno de casemira inglesa estragado, o chapéu perdido no fundo do rio e os
sapatos de camurça com sola grossa avariados. Alguém perguntou por que não
havia, pelo menos, tirado o chapéu e os sapatos antes de se atirar no rio. Sorriu
sem graça, entregou o garoto aos pais, enquanto a multidão aplaudia e Moacir
Andrade continuava berrando:
- Herói, herói!
Foi ai que ele se
aproximou do Moacir e lhe disse bem baixinho:
- Herói é o caralho!
Quem foi o filho da puta que me empurrou no rio? Eu ia salvar o garoto, não
precisava me empurrar, seu porra.
Há testemunhas de que
quem empurrou foi mesmo o Moacir, que está vivinho da silva e pode dar a sua
versão. De qualquer forma, por esse e outros feitos, Maravalhas recebeu o
titulo de Cidadão do Amazonas concedido pela Assembleia Legislativa por
iniciativa do deputado Maneca, numa sessão em que o agraciado, em vez de
discurso, abriu o vozeirão para cantar seu fado preferido "Foi Deus",
da Amália Rodrigues:
-
Fez poeta o rouxinol
Pôs
no campo o alecrim
Deu
as flores à Primavera
Ai,
deu-me esta voz a mim.
Depois da sessão
convidou o distinto público para comer um senhor bacalhau e tripas à moda do
Porto no bairro de Aparecida, onde sempre morou, ultimamente num prédio que
construiu na rua Alexandre Amorim.
Casado com dona Alice,
teve três filhos: Constância, médica, reside em São Paulo; Frank, administrador
de empresa, ficou em Manaus; Izabel, psicóloga, mora agora em Póvoa de Varzim,
com quem ele foi passar o carnaval e revisitar o seu torrão natal. Recolheu
seus passos, olhou a nesga do rio e cruzou pela última vez a ponte sobre o
Douro. No dia 11 de fevereiro, deu adeus ao Porto tripeiro e morreu aos 89 anos
na cidade onde nasceu. Faz parte da migração portuguesa que se acabocou e que nos
deixa saudosos. O bairro de Aparecida perde seu herói. Ele ia pular. Não precisava o Moacir empurrar.
P.S. Minhas dispersas
lembranças foram reavivadas por Serafim Corrêa e por seu Campos da Usina de
Beneficiamento de Castanha dos Benzecry, em Educandos. Ele e dona Creusa, de
quem Maravalha, padrinho de Fátima, é compadre, foram entrevistados pelo Tuta e
Regininha, a quem agradeço, assim como às marias papoilas que trouxeram
histórias, fotos e música. Ao Geraldo Pinheiro, a brilhante tese é sempre uma fonte
de consulta.
P.S. 2- Nesta terça (16), faleceu em Manaus o padre
Cânio Grimaldi, fundador da Faculdade Dom Bosco. Nossa solidariedade à família
salesiana nesse momento doloroso de perda.
*
Jornalista e historiador
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