Contextualização da visita de Camus ao
Brasil
“O contraste mais impressionante é fornecido pela ostentação
de luxo dos palácios e dos prédios modernos, com as favelas, às vezes a cem
metros do luxo, agarradas ao flanco dos morros, sem água nem luz, onde vive uma
população miserável, negra e branca. As mulheres vão buscar água no sopé dos
morros, onde fazem fila, e trazem de volta sua provisão em latas de alumínio,
que carregam na cabeça como as mulheres kabiles. Enquanto esperam, passam
diante delas, numa fileira ininterrupta, os animais niquelados e silenciosos da
indústria automobilística americana. Nunca o luxo e a miséria me pareceram tão
insolentemente mesclados. É bem verdade que, segundo um dos meus companheiros,
‘pelo menos, eles se divertem muito’”.
Este parágrafo, pinçado a esmo, traz as impressões de Albert
Camus da cidade do Rio de Janeiro, então a capital do País, em sua longa e
estafante visita ao Brasil, em 1949. Consta do seu livro “Diário de Viagem”.
Nele está expressa, com contundente sinceridade, o que ele achou do nosso país
e do nosso povo. Embora possa ferir nosso orgulho, expressa com realismo e
crueza o que éramos então, e o que ainda somos em vários aspectos. Chocaram-no,
principalmente, como se depreende desse parágrafo, os gritantes contrastes
entre a opulência e a miséria. Note-se que, apesar de economicamente São Paulo
já ser a cidade brasileira de maior importância, em termos internacionais
(como, aliás, ocorre ainda hoje) o Rio de Janeiro chamava mais a atenção.
O Brasil que Albert Camus conheceu – e ele esteve em muitos
lugares, e em tempo relativamente curto – era, em termos de desenvolvimento,
muito diferente deste de hoje. Se o de hoje está longe do ideal, o de então era
infinitamente pior. Os contrastes e injustiças sociais, que atualmente ainda
são tão gritantes e contundentes, na ocasião raiavam ao absurdo. A população
brasileira era estimada em 1949 (entendo que grosseiramente) em algo em torno
de 49,5 milhões de habitantes, sendo que cerca de 70% concentrados no campo. A
distribuição territorial era bem diferente da de hoje. O Brasil contava com 20
Estados, quatro territórios (Guaporé, Acre, Rio Branco e Amapá), além do
Distrito Federal. Brasília não estava sequer em sonho do mais delirante
idealista. Rodovias minimamente transitáveis havia pouquíssimas. Talvez possam
ser citadas, e com muita boa vontade, apenas duas: A Via Dutra e a Anchieta.
Viajar naquele país gigantesco e vazio de então era uma aventura que poucos
ousavam empreender.
Nas ruas das capitais circulavam alguns automóveis, mas todos
importados dos Estados Unidos, a maioria sucatas, que se não viessem para cá,
os norte-americanos encaminhariam, certamente, ao ferro velho, e um ou outro
mais “moderno”, defasado dois ou três anos em relação aos que circulavam na
terra de Tio Sam, estes propriedades das pessoas abastadas, de nossa pífia e
caricata elite (que então era ridicularizada no exterior, por seu atraso e pela
ostentação, de gosto duvidoso). Albert Camus esteve, além do Rio de Janeiro, em
São Paulo, na zona do Vale do Ribeira, e em Salvador e no Recife. Cada uma
dessas etapas merece comentários próprios, a parte, por deixarem impressões
diferentes no espírito saudavelmente crítico do ilustre visitante.
Três anos antes de viajar para a América do Sul e de passar
48 dias no Brasil, o escritor havia visitado os Estados Unidos. Ali, teve
recepções variadas. Despertou entusiasmo entre os universitários, que o acolheram
com respeito e admiração. Recorde-se que ainda não havia publicado o livro que,
no meu entender, o consagrou: “A peste”. Mas as autoridades norte-americanas
receberam-no com frieza e desconfiança, porquanto suas idéias políticas não eram
vistas com bons olhos por ali. A tal “guerra fria”, que por décadas confrontou
os Estados Unidos e a União Soviética, estava começando a “esquentar” e por
muito pouco não chegou a “ferver”. Dois anos depois dessa visita de Camus aos
EUA, em 1948, por muito pouco o Bloqueio de Berlim não deflagrou uma terceira
guerra mundial. Faltou pouco, muito pouco, pouquíssimo para isso. E não eram
segredos para ninguém as idéias esquerdistas de Camus. Para as autoridades
norte-americanas, portanto, o escritor francês era “persona non grata”.
Todavia, não era no Brasil.
Matéria relativamente recente do jornal “O Globo” (se não me
falha a memória, de 2013), informa: “Ainda
a bordo do Campana, o navio que o trouxe de Marselha, Camus deu entrevista a
jornalistas brasileiros. Explicou que a visita era uma iniciativa do governo
francês e que também visitaria o Chile e o Uruguai. A passagem pela Argentina
estava ameaçada, já que uma de suas peças fora censurada por lá. O escritor
também falou sobre Sartre e o existencialismo e contou que suas palestras no
Brasil seriam sobre temas como a crise moral na Europa e a literatura francesa.
Evitou ainda comentar sua atuação na Resistência Francesa. Por fim, confessou
que, embora ‘A peste’ tivesse feito mais sucesso, seu livro preferido era ‘O
estrangeiro’”.
Como se vê, há tanta coisa a ser dita sobre a visita de
Albert Camus ao Brasil e sequer completei a mera contextualização do assunto.
Tratarei dela com mais vagar, para o que recorrerei a duas preciosas fontes,
ambas matérias de jornais e não tão antigas assim. Uma delas é a ótima
abordagem da passagem do escritor pelo Recife, feita pelo jornalista Paulo
Goethe (que faz jus ao ilustre sobrenome, destaque-se), publicada em 6 de
novembro de 2013 no tradicional “Diário de Pernambuco”. Outra é a não menos
brilhante matéria, de André Pomponet, tratando da visita de Camus à Bahia,
publicada no jornal “Tribuna Feirense”, em fevereiro de 2002. Aguardem. O
assunto promete!!!
Boa leitura.
O Editor.
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Os livros de viagem são instigantes. A gente se vê pelos olhos nem sempre tolerantes do visitante. É bom ler tais obras.
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