Barbara era uma vez uma águia negra
* Por
José Ribamar Bessa Freire
"Chove
em Nantes.
Dá-me
tua mão,
o
céu de Nantes
fere
meu coração". Barbara (1930-1997).
Essa é a história de
uma canção fabulosa que descreve a ternura e o carinho de uma águia, cuja alma
submersa escondia um abutre predador. Só muito tempo depois, a identidade da
ave de rapina foi revelada pelos acordes de um piano negro. Aconteceu na
França. Foi assim.
A águia sobrevoava,
triunfante, os céus de Paris, quando lá cheguei, em dezembro de 1970, com doze
dólares no bolso, e fui recebido por exilados que viviam em plena "misère
dorée". Éramos os pobres de Paris. Na maior pindaíba, mas em Paris. Com
fome, mas em Paris. Foi lá, nesse contexto, que tive o primeiro contato com a
música francesa no apartamento de um casal solidário que me hospedou. Não havia
ainda desfeito a mala e, no tocadisco, uma voz intensa, cristalina, já cantava
L´aigle noire. Era Barbara, a quem até então eu desconhecia. Qual a razão desta
canção estar nas paradas de sucesso?
Et ben, dis donc! A
letra narra um sonho da cantora. Ela cochilava às margens de um lago, quando
inesperadamente surge, não se sabe de onde, uma águia negra que rasga o céu.
Com as asas abertas, rodopia lentamente até pousar a seu lado. Com o bico, acaricia-lhe
a face, com o pescoço afaga-lhe a mão. Ela reconhece, então, aquela figura que
emergia da infância, com olhos vermelhos de rubi, plumas negras e um diamante
azul na cabeça, qual rei coroado e poderoso, e que no final vai embora,
deixando-a sozinha com sua dor, congelada, morta de frio.
Tantas vezes ouvi essa
música nas últimas décadas, enlevado por sua beleza melódica, que decorei a
letra. Aquela voz de frágil cristal, suspensa por um fio, que parecia saborear
o som, falava de relação amorosa, de carícias. Ela faz parte da última geração
de cantores de cabaré que cantavam o amor desencantado, que faz sofrer, que
dói, que se materializa. Talvez por isso estivesse nas paradas de sucesso.
O piano negro
Demorou quase meio
século para eu conhecer o outro lado. Somente agora li o livro "Il était
un piano noir...", autobiografia inacabada de Barbara publicada um ano
após sua morte, na qual ela faz revelações estarrecedoras. Soube do livro por
acaso em novembro passado, quando em visita a Paris, a caminho de uma praça
onde marcara um encontro, passei diante do nº 6 da rua com o sugestivo nome de
Rue Brochant. Uma placa indica: aqui nasceu e morou Barbara. Tirei uma
foto.
Segui os rastros da
cantora por ruas e logradouros de Batignolles, bairro em cuja praça ajardinada
- a Square des Batignolles - ela brincava, e que hoje tem uma alameda com seu
nome. Foi sentado ali, num banco à beira de um pequeno lago, que uma amiga
francesa me indicou o livro no qual Barbara revela que sofrera abuso sexual de
seu pai durante a infância. A águia negra era seu pai - concluiu o lacaniano
Philippe Grimbert, autor de "Psychanalyse de la chanson", embora
Barbara não tenha explicitado tal relação entre o assédio e a música.
Deixo a interpretação
aos especialistas. No entanto, não consigo mais cantarolar a música que Barbara
fez inspirada numa sonata de Beethoven, sem sentir um aperto no coração,
pensando no assédio incestuoso. Ela relata que não atinava como a presença do
pai continuava a lhe infundir medo, mesmo depois que ele atendeu seu pedido de
alugar um piano negro.
- À mesa, basta ele me
olhar, que eu começo a tremer, derrubo meu copo, deixo cair o garfo. Eu não
compreendo bem porque ele só é carinhoso comigo quando nós dois estamos
sozinhos, aí seu comportamento se torna estranho e suspeito - escreve ela.
O assédio cresce. Ela
conta o horror de uma noite em que seu mundo desmoronou com as investidas do
pai, quando tinha dez anos e meio. "Cada vez mais aumenta o pavor que
sinto do meu pai. Ele sente. Ele sabe. Tenho necessidade da minha mãe, mas como
contar-lhe isto? O que lhe digo? Que acho o comportamento dele suspeito? Fico
quieta".
Choveu em Nantes
Barbara tem
consciência de que não se trata apenas de um problema individual, dela. Faz
algumas reflexões sobre o silêncio das crianças nessa situação que parece ser
mais comum do que se imagina, embora as famílias prefiram não tocar no assunto:
- As crianças se calam
porque os adultos recusam em acreditar nelas. Porque suspeitam que estão
inventando. Porque elas têm vergonha e se sentem culpadas. Porque morrem de
medo. Porque acreditam que estão sozinhas no mundo com seu terrível segredo.
Quando completou 15
anos, ela venceu o medo. Numa tarde, durante férias familiares na estação
balneária de Trégastel, na Bretanha, fugiu do pai e foi denunciá-lo á Delegacia
de Polícia, mas lá, na Gendarmerie, parece que só havia homens. Um dos
policiais, que a escutou atentamente, explicou que ela era de menor e que tinha
de retornar à sua casa. Quem vem buscá-la? O próprio pai, que "dá a
entender que eu sou doente mental, uma impostora, que é tudo invenção". A
queixa é arquivada, ela é levada de volta para casa, mas percebeu que o pai,
apesar de puni-la, sentiu o golpe.
Algum tempo depois,
quem fugiu foi ele. Abandonou a mulher e os quatro filhos, desapareceu e nunca
mais deu notícias, ninguém sabia seu paradeiro até que em dezembro de 1959,
Barbara, já cantora famosa, recebe um telefonema, informando que seu pai morria
num hospital de Nantes. Hesita. Vai visitá-lo com "a lembrança que mistura
fascínio, medo, desprezo, raiva e um enorme desespero", mas já o encontra
morto. Reconhece o cadáver e providencia o enterro numa fossa comum no caixão
mais barato.
No velório, Barbara
encontra os amigos do pai, parceiros de copo, de intermináveis partidas diárias
de poker e de vagabundagem, que falam dele como "um homem extraordinário
que amava os quatro filhos que o rejeitaram". Essa era a versão dele.
"Eu escuto, transtornada, o perfil deste homem que eu não conheci e no
qual descubro algumas qualidades" - ela diz, sem ironia.
Mas a relação com o
pai é apenas um tópico no texto das memórias. Ela fala de sua infância, da
relação com os irmãos, mãe, avós, com a escola, com a música. Revive as
lembranças da guerra, a perseguição aos judeus e a fuga da família por diversas
cidades. Relata sua passagem pela Bélgica, sua carreira artística nos cabarés,
seus discos, sua relação com o público e com os amigos com quem dividiu
espetáculos. Estão lá Gérard Depardieu, Georges Brassens, Anne Sylvestre, Leo
Ferré, Georges Moustaki, Jacques Brel, Edith Piaff e tantos outros.
A questão de gênero
também está presente ao longo das páginas. Registra o que sentiu quando compôs
sua primeira canção de amor:
- Até hoje, eu só
havia cantado canções de amor feitas por homens; agora, eu posso, finalmente
cantar o amor como uma mulher. Se é verdade que falam da mesma coisa, as
mulheres dizem de forma bem diferente".
Assum preto
O pai reaparece no
final. Nas vezes que retornou a Nantes, Barbara fez discretas visitas ao
cemitério levando coroa de flores, sempre desapontada por não havê-lo
encontrado ainda vivo:
- Lamento ter chegado
muito tarde. Esqueço todo o mal que ele me fez. Meu maior desespero foi não
poder dizer a esse pai que eu tanto detestei: "Eu te perdoo, tu podes
descansar em paz. Eu consegui me libertar, porque eu canto".
Continuou cantando.
Livre. Mas se o pai era a águia negra, ela era o assum preto, que cego dos
olhos, canta de dor. Enterrou o pai e compôs a música "Choveu em
Nantes", onde exorciza seus fantasmas.
P.S.- Barbara: Il
était un piano noir... Mémoires interrompus. Paris. Fayard. 1998. 189 pgs.
Nesta autobiografia publicada por seus irmãos, Barbara investe corajosamente
contra o abuso do poder falocrático, consumado logo no espaço doméstico e
familiar que devia lhe oferecer proteção.
A AGUIA NEGRA (versão
em português)
Um belo dia, ou talvez já fosse de noite,
Estava eu cochilando
às margens de um lago,
Eis que de repente,
parecendo rasgar o céu
e vindo não se sabe de
onde,
surgiu uma águia
negra.
Lentamente, com as asas bem abertas,
Lentamente, eu a vi rodopiar.
Com um farfalhar de
asas,
como se tivesse caído
do céu,
o pássaro pousou bem
perto de mim.
Ele tinha os olhos da
cor do rubi
Tinha as plumas da cor
da noite
Na sua cabeça, como um
rei coroado,
o pássaro ostentava um
diamante azulado
brilhando com todo
esplendor.
Com o seu bico, ele
acariciou minha face,
Na minha mão, ele
deslizou seu pescoço.
Foi então que eu o
reconheci:
ele veio até mim
emergindo do passado.
- Ouve-me, pássaro, oh ouve-me e leva-me contigo.
Regressemos ao país de
outrora,
como antigamente, nos
meus sonhos de criança,
para escutar,
trêmulos, as estrelas, as estrelas.
Como antigamente, nos
meus sonhos de criança.
como antigamente,
sobre uma nuvem branca,
como antigamente, vem
incendiar o sol,
ser um fazedor de
chuvas
e fazer maravilhas.
A águia negra, com um
fragor de asas,
inicia seu voo para
retornar ao céu
Quatro plumas, cor da
noite,
Uma lágrima, ou talvez
um rubi.
Eu tremia de frio,
nada mais me restava.
O pássaro havia me
deixado
sozinha com a minha
dor.
L´AIGLE NOIR
Un beau jour, ou
était-ce une nuit
Près d'un lac je
m'étais endormie.
Quand soudain,
semblant crever le ciel
Et venant de nulle
part
Surgit un aigle noir.
Lentement, les ailes
déployées,
Lentement, je le vis
tournoyer.
Près de moi, dans un bruissement
d'ailes,
Comme tombé du ciel,
L'oiseau vint se
poser.
Il avait les yeux
couleur rubis
Et des plumes couleur
de la nuit.
À son front, brillant
de mille feux,
L'oiseau roi couronné
Portait un diamant
bleu.
De son bec, il a
touché ma joue.
Dans ma main, il a
glissé son cou.
C'est alors que je
l'ai reconnu :
Surgissant du passé,
Il m'était revenu.
Dis l'oiseau, O dis,
emmène-moi.
Retournons au pays
d'autrefois,
Comme avant, dans mes
rêves d'enfant,
Pour cueillir en
tremblant
Des étoiles, des étoiles.
Comme avant, dans mes
rêves d'enfant,
Comme avant, sur un
nuage blanc,
Comme avant, allumer
le soleil,
Être faiseur de pluie
Et faire des
merveilles.
L'aigle noir, dans un
bruissement d'ailes
Prit son vol pour
regagner le ciel.
Quatre plumes, couleur
de la nuit,
Une larme, ou
peut-être un rubis.
J'avais froid, il ne
me restait rien.
L'oiseau m'avait
laissée
Seule avec mon
chagrin.
https://www.youtube.com/watch?v=YdKH1TU2B7E
- L´aigle noire
https://www.youtube.com/watch?v=Vzfx25UC9oo
- Il pleut sur Nantes
*
Jornalista e historiador
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