Podia ser meu filho
* Por
Luara Colpa
“Mas
você será executado à luz do dia filho. Na porta de casa. E eu vou lavar seu
sangue. Você será metralhado com 50 tiros. Você e seus amigos pretos. Porque
sim”.
Estou a parir meu
filho preto. Na maca, onde a enfermeira impaciente empurra minha barriga, me
livro da dor pensando em seu futuro:
De uniforme e banho
tomado, ele desce a ladeira.
– Cuidado ao
atravessar a rua! (Ele olha pra trás e sorri).
– Não esquece a
merendeira, hein, filho? – Tá mãe!!
– Esteja bem vestido
(para não te confundirem… com ladrão).
– Não erga a cabeça
pro polícia.
Vou franzindo a testa
e abaixo o tom de voz:
– Ande com carteira de
trabalho no bolso e apresente-a sempre que abordado.
– Se quiser ter o
cabelo colorido, será confundido com bandido. Se quiser homenagear seus
ancestrais e fazer dreads e penteados, será chamado de vagabundo.
– Você poderá apanhar
na cara. – Por que mãe? – Porque sim, não revide.
– Você sofrerá
revistas vexatórias todas as semanas da sua vida. Porque sim.
– Você será chamado de
macaco, “esse preto”, “de cor”.
– Não ande em grupos
para não ser confundido com arrastão.
– Estude filho, vão
falar que as cotas o salvou, que é incapaz. Não dê ouvidos a eles.
– Se você se esforçar
muito no trabalho, será chamado de “moreninho até que é esforçado” e mesmo que
te explorem e expurguem, e que seu salário seja menor que o de todos… Usarão
seu exemplo, pra justificar a meritocracia canalha que nos imputam.
– Em qualquer furto na
empresa você é o suspeito, filho. Sim.
– Você será mal visto
o resto da sua vida na família da sua namorada branca. Porque sim também..
Sua mãe vai sofrer
violência obstétrica no hospital. Porque é preta. Você vai nascer na contramão
da vida. Porque alguma igreja um dia disse que não tínhamos alma.
Que nossa cultura era
inferior e mediram nossos dentes e nossas canelas. E nos deram um terço pra
tentarmos nos redimir de termos nascido nessa cor.
Quando acharam
oportuno, vestiram nossos turbantes e se apropriaram da nossa capoeira. Quando
não nos queriam mais, nos forjaram “livres” na Lei do Sexagenário. E então
fomos expulsos da escravidão para a escravidão real.
Aqui estamos. Somos a
história dos centros urbanos, filho. Fomos expulsos do modelo de cidade e do
convívio entre pessoas. Nunca fomos pessoas.
Da periferia para
periferia seguimos, expurgados.
Não nos perguntaram
onde construímos nossa vida, nossa raiz. Somos sem estória. A cada despejo,
fomos para a região metropolitana que nos colocavam. Em cada plano de habitação
que meia dúzia de engomados brancos escreveram, fomos encaixotados nos
predinhos de 40m². Bem longe. Longe dos olhos dos gringos.
Taparam nossas casas
com tapumes para a Copa do Mundo. Botaram camburão na nossa quebrada, para nos
lembrar que desde “o fim” da escravidão, não sabem o que fazer para tampar
nossa existência.
Vão te dizer que mesmo
em estado de sítio, você tem direito de ir e vir no seu país (que seus
ascendentes construíram lajota por lajota. Paralelepípedo por paralelepípedo).
Mas você será
executado à luz do dia, filho. Na porta de casa. E eu vou lavar seu sangue.
Você será metralhado
com 50 tiros. Você e seus amigos pretos. Porque sim. Porque fazem parte da
parcela da população que tem que ter regras para estar vivo. Que é achincalhado
desde o nascimento.
Nos exterminarão todos
os dias, todos os dias “um crime isolado”.
E jogarão a culpa no
policial noiado, no indivíduo sob pressão, na legítima defesa. A sociedade não
reconhecerá que são todos cúmplices da sua morte.
Eles estão certos,
agem em “legítima defesa”. Te avisei para não sair sem a carteira de trabalho
filho. Aliás, nem deu tempo de mostrar, né? Te avisei pra não encarar o
polícia… Também não precisou. É, não deu tempo.
Vamos entrar pra
estatística, filho.
Eles só têm a
televisão. Só têm a visão longínqua e deturpada do que somos. Eles desligarão a
TV quando incomodar. Eles não sabem de mim, nem de você.
Só mais uma mulher
sozinha parindo sob violência.
Só mais um preto
metralhado. O Deus branco que nos perdoe, somos sem alma.
* Luara Colpa é Advogada e militante, 28 anos.
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