Morre a bailarina Maria Ester
Stocker
* Por Ronaldo Bressane
Vítima de câncer, a bailarina morreu no
dia 24 de setembro (de 2006). Maria Ester foi casada com o cineasta José Agrippino de Paula
(cujo livro PanAmérica
inspirou Caetano Veloso na época do Tropicalismo) e, assim como ele, ajudou a
contracultura nos anos 70 e 80. Stocker trabalhou também com a coreógrafa Maria
Duschenes em sua trajetória pela dança moderna, especialidade de Duschenes.” (Folha de S.Paulo, 27
de setembro)
“A Maria Ester gosta de sair, passear
por aí, ir a bares e teatros, se divertir, tomar sol na praia. Eu prefiro ir ao
Amarelinho, conversar com o Jô
Soares sobre literatura e jazz.” Bons tempos aqueles, sim,
deviam ser. Tão bons que se colaram definitivamente ao prosear monolítico de
Agrippino. Porque era isso, nesse tempo verbal, que ele contava pra gente, Joker
e eu, quando o visitamos, uns quatro anos atrás, em sua casa no Embu. Sim: em
pleno 2002 o autor de Lugar
público e PanAmérica,
pai fundador da Tropicália,
a mesma do ministro Gil
e do Cê,
ainda permanecia com a fala entranhada no presente ano de 1970, quando ele e a
bailarina Maria Ester Stockler formavam o casal de artistas paulistanos mais
bonitos, enigmáticos e influentes do Rio de Janeiro.
Então, eu e o gerente do HellHotel pensávamos
em escrever uma biografia de Agrippino. Entrevistamos várias pessoas, e o
projeto, mesmo não abandonado, segue em forma de feto. Depois da entrevista com
o panamericano – envolta em duas cassetes, que não verti ao papel até hoje –,
conversamos com gente como Stênio
Garcia (que estreou no teatro na mais revolucionária peça dos
anos 1960, Rito do
amor selvagem, de Agrippino), Gerald Thomas (que reconhece
naquela peça, a que assistiu ainda adolescente, como fundadora de seu teatro
multimidiático) e o jornalista contracultural Luiz Carlos Maciel. Era preciso
falar com Maria Ester, mas não havia notícia de seu paradeiro – somente
sabíamos que vivia em Paraty.
(Enquanto nossa entrevista com Agrippino
fermenta em duas fitas, Terron apresenta sua memória do encontro em dois contos
do livro Sonho
interropido por guilhotina, a ser lançado 19 de outubro).
Na primeira Flip (2003),
Joker e eu mandávamos uma Corisco
em frente ao bar Toronto quando captamos o andar trôpego de um genérico do
Agrippino, um barbudo cambaleando ali pelas pedras. Foi bem estranho. Quase no
mesmo minuto, o intuitivo Joca orelhou a conversa de duas senhoras ao nosso
lado – “Desculpe, mas a senhora falou em Maria Ester , é da Maria Ester Stocker que está
falando?”. Era! “Sabe onde ela está?” Ela freqüentava um boteco ali perto, na
rua do Sol. A tarde caía, pra lá fomos.
A ex-bailarina havia envelhecido
bastante. Mesmo assim conservava certa altivez no porte e uma beleza antiga nos
olhos verdes. No boteco, uns playboys cariocas tentavam emular,
voz-flauta-violão-e-banquinhos, alguma bossanova
que não viveram. Cantavam alto, mal ouvíamos os sussurros de Maria Ester.
Esquisito: durante a conversa com Agrippino, a voz dele ia descendo, descendo,
descendo, e Joca e eu quase caíamos hipnotizados, tentando acompanhar seu
pensamento. No papo com sua ex-mulher, acontecia o mesmo – só que foi ela quem
caiu no chão, escorregada do banquinho. Os playboys riram do tropico da famosa
bailarina, ora virada em velha bêbada – que lhes lançou um olhar assustador.
E ela prosseguiu, por umas duas horas,
contando sua vivência com o escritor. Os trabalhos em conjunto (como o famoso O planeta dos Mutantes,
escrito por Agrippino e dirigido por ela, primeiro espetáculo multimídia
brasileiro), as viagens, as drogas, o adeus à família rica (era herdeira da
casa financeira Haspa), a casa maluca em que viviam no Pacaembu – onde certa
vez a polícia deu uma violenta batida. O choque talvez tenha detonado o processo
irreversível de esquizofrenia que levou Agrippino para longe da consciência: no
ato ele quis sair do Brasil, sentindo-se perseguido. E então as viagens à África, a vida
psicodélica na Bahia, os filmes perdidos da dupla de artistas que queriam
trazer para o celulóide sua experiência com uma coreografia que se pretendia
ponte entre vida e arte. Daí os surtos de Agrippino, suas fugas (era visto
praticando yoga nu em Ipanema), as brigas, o nascimento da filha Manhã, o
divórcio, a grana encurtando. E a morte de Manhã, num acidente automobilístico.
Tempo depois, Maria Ester se estabelecia em Paraty.
“Agrippino nunca soube que Manhã
morreu”, ela dizia, quando a levávamos a seu carro. “Talvez já nem saiba que
ela nasceu um dia”, contava Maria Ester, os imensos olhos verdes enevoados em
álcool. Havia algo de Agrippino naqueles olhos – algo que nem ele tem mais –
mas também esse algo já se foi. “E assim vai passando uma época”, Joca
comentava comigo. “E no jardim os urubus passeiam/ a tarde inteira entre os
girassóis”, cantaria Caetano
– aquele, de um outro tempo.
* Ronaldo
Bressane é escritor (Céu de Lúcifer) e redator-chefe da revista Trip (www.trip.com.br); seu blog é o Impostor
(impostor.wordpress.com).
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